PROCESSO CRIATIVO NO NUTAAN – Aproximações com Antonin Artaud e Gilles Deleuze
Por Chiu Yi Chih
Antonin Artaud é um daqueles artistas que, segundo Gilles Deleuze, possuem uma escritura “nômade”, “rizomática”, uma escritura que “esposa uma máquina de guerra e linhas de fuga, abandona os estratos, as segmentaridades, a sedentariedade, o aparelho de Estado”.1 Artaud não pensa com o intelecto, mas com o corpo. Seus pensamentos atravessam os “nervos” até chegarem à alma.
Assim vejo também o trabalho do Núcleo Taanteatro. Nosso corpo é uma caligrafia nômade que, através de exercícios do Poder da Mandala e de uma série de improvisações, passa por uma desterritorialização. Ou seja, por um processo de “limpeza” e reconfiguração de suas musculaturas. Nesse templo que é o nosso corpo-usina efervescente há vapores, rios, nervuras, memórias ancestrais, invólucros imaginários, inominável Atma. Sóis, alvéolos – um Eu Rachado. O corpo é um tecido rico de costuras, remendos e orifícios onde é possível sempre encontrar seus pontos de fuga e suas brechas. Daí que é preciso chegar a pensar com um corpo esquizofrênico. Um corpo atravessado por multiplicidades moleculares, órgãos pululantes, formigamentos. Rompemos assim com a tradição dualista-cartesiana que separava corpo e alma, razão e instinto. Há meandros, labirintos, circunvoluções orgânicas, pontes silenciosas.
Em matéria de linguagem, isso se traduz pela imensa proliferação de elementos corporéos metaforizados. Imagens da natureza e do corpo se fundem e criam uma paisagem quase indecifrável. Estilhaços de órgãos corporais se misturam com chamas, galhos, animais, substâncias metálicas, árvores, e toda a sobreposição se dispersa e se divide numa paisagem alucinatória.
Quem no seio de certas angústias, no fundo de alguns sonhos não conheceu a morte como uma sensação ameaçadora e maravilhosa com a qual nada se pode confundir na ordem do espírito? É preciso ter conhecido essa subida absorvente da angústia cujas ondas chegam sobre vós e vos afundam como movidas por um sopro insuportável...2
Esse estado é como “o extravio de um naufrágio insensato” (l’égarement d’une noyade insensée), “sufocação suprema” (suffocation suprême), “dilaceramento superior” (déchirement supérieur), “terrores grandiosos e irracionalizados” (terreurs grandioses et irraisonnées). Há, sem dúvida, uma margem de indefinição, de impossibilidade, de derrocada:
(...) é o próprio corpo chegado ao limite de sua distensão e de suas forças e que deve mesmo ir além. É uma espécie de ventosa colocada sobre a alma, cujo azedume corre como um ácido até as últimas bordas do sensível (p.123).
Mais do que num mero estado melancólico e nostálgico, sente-se que o corpo mergulha “numa luminosidade em que finalmente seus membros se afrouxam, lá onde as paredes do mundo parecem destrutíveis ao infinito...” Ou seja, ocorre-lhe uma experiência que vai além das expectativas da ordem representativa, sendo a morte esse grande símbolo. É um imenso afeto sinestésico que destrona a posição segura do sonhador, impõe-lhe uma espécie de “abertura fenomenológica” diante da morte. “Como o dilaceramento de uma membrana próxima, como a elevação de uma asa que é o mundo, ainda informe e mal assegurado”. Cria-se aí a metáfora da destruição dos limites: “o sonho é verdadeiro. Todos os sonhos são verdadeiros. Tenho o sentimento das asperidades, das paisagens como esculpidas, de pedaços de terra ondulantes, recobertos de uma espécie de areia fresca, cujo sentido quer dizer: remorso, decepção, abandono, ruptura...” (p.126).
A experiência do “marítimo”, um dos exercícios de devaneio poético (Gaston Bachelard) com a fauna e a flora marítima, potencializa a dilatação da consciência.Tensão destrutiva, dilacerante, ao invés de uma síntese pacífica. Desmembramento. Decomposição. Corpo sem órgãos. Entretanto, a destruição não ocorre sem uma nova recomposição. Isso me lembra o Heliogábalo, arquétipo do andrógino e da fusão anárquica. Heliogábalo – a síntese dos contrários, a revolução e a peste no seu próprio corpo torturado. Mas uma síntese que permanece pura negatividade. “Heliogábalo é o homem e a mulher. E a religião do sol é a religião do homem, que porém nada pode sem a mulher, seu duplo, na qual se reflete. A religião do UM que se corta em DOIS para agir. Para SER. UM e DOIS reunidos no primeiro andrógino...”3
Esse corpo dilacerante e anárquico se esquarteja para ser absorvido numa estranha unidade, constantemente inundada por ondas de energias contraditórias. Tal como em alguns poemas surrealistas onde as imagens contrárias se combinam em oxímoros, analogias e metáforas preciosas, há na trama artaudiana estranhas constelações que explodem o seu corpo. Sóis e cometas que gravitam e racham as órbitas de seu pensamento, símbolos arquetípicos em revolução que retraçam a cartografia nômade desse corpo liberado de todos os entraves. Heliogábalo é o emblema dessa anarquia, o signo do próprio teatro da crueldade.
Corpo carregado de uma tensão perigosa que chega aos limites da abundância e do excesso. Transgredindo os limites de si mesmo. Um corpo que se estraçalha. O que Nietzsche dissera a respeito do artista dionisíaco se aplica a Artaud: o desejo de destruição, a recusa de qualquer princípio “realista” na arte, a “energia abundante” que perpassa todas as camadas da consciência e do corpo.
Após a decomposição, acumular corpos. Criar intensidades. Como se isso fosse a condição do pensar. Agrupar estratos, sub-estratos, partículas, multiplicidades. Forjar assim um agenciamento maquínico, um plano de imanência com rupturas e precipitações. Sonhar e dançar com um corpo sem órgãos. E por que – podemos nos perguntar – um corpo sem órgãos? Justamente um corpo destituído de suas partes mais vitais?
O homem é enfermo porque é mal construído. Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo que o corrói mortalmente,
deus
e juntamente com deus
os seus órgãos
Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.4
Essa declaração de Artaud coincide plenamente com a sua proposta estética conhecida como “teatro da crueldade”. Destruir os órgãos do corpo significa destruir as “coerções” sociais que impregnaram nosso ser físico-mental. Em outras palavras, destruir o corpo e os seus órgãos implica chegar ao grau zero, ao vazio, donde a verdadeira criação poderá irromper – aí se desvenda um elo de sentido do Taanteatro com Artaud. Significa destruir a sociedade que se enraíza em nós – as suas convenções, os seus sistemas de castração. É somente a partir dessa crueldade, desse mal inerente a todo ato criador, que nasceria um novo ser.
É por isso que o teatro contemporâneo ocidental deveria se libertar do naturalismo psicológico (Cf.O Teatro e o seu Duplo). Dava-se um peso enorme à interpretação teatral (no sentido psicológico do termo), à arte da imitação, pois, os atores sobrecarregavam a cena com a sua linguagem verbal, aquela linguagem falada mediante o uso das palavras, esquecendo de outros meios de encenação: os gestos, os sons, os movimentos corporais, os timbres da voz, a pantomima, a dança, a música etc. Além disso, era preciso descondicionar o corpo de seus vícios psicologizantes, atentando-se para outras possibilidades de simbolismo. Por isso, o teatro da crueldade seria uma nova compreensão do fazer teatral, onde ser cruel não significava, segundo Artaud, “efervescência de apetites perversos e que se expressam através de gestos sangrentos”5, um caos de sensações e de provocações. Ao contrário, assinalava “um sentimento distanciado e puro, um verdadeiro movimento do espírito, que seria calcado sobre o gesto da própria vida e na idéia de que a vida, metafisicamente falando e pelo fato de admitir a extensão, a espessura, a condensação e a matéria, admite, por consequência direta, o mal e tudo que é inerente ao mal, ao espaço...”6 O mal de que fala Artaud, a vida, o movimento do espírito são as forças titânicas difíceis de serem representadas pelo mero drama psicológico ou social. São forças xamânicas/cósmicas, oriundas da cosmogonia, dos “grandes mitos negros”7, forças com as quais o poeta entrou em contato no México quando participou das cerimônias sagradas da Dança do Peyote.
Com o teatro, Artaud não queria “mimetizar”, mentir, iludir, ou seja, “representar” alguma coisa, seja uma moral psicológica ou uma fábula. Na verdade, o teatro podia ser o espaço alquímico por excelência, onde fluxos e emanações de vida e de morte poderiam ser sensorialmente sentidos como verdadeiras materializações. Aquilo que acontecia ao espírito do ator seria análogo ao que acontecia a um mago quando este tinha de passar pelas transformações de um processo alquímico. Na linguagem da alquimia, as diversas formas que a matéria assume na sua transformação correspondem aos diversos estados de espírito do alquimista. O trabalho do ator seria passar por todas “canalizações”, “os limbos”, as passagens da matéria até chegar à Grande Obra. O curioso é que, antes de encontrar o Taanteatro, eu conhecia essa concepção dos estados de ser. Um dos exercícios propostos pelo Taanteatro que é a passagem pelos três estados da matéria (gasoso, líquido e sólido) veio ao encontro do que eu pensava.
Essa alquimia teatral era metafísica não no sentido de uma transcendência intelectual, mas no sentido da realização filosófica do Drama Cósmico. Por trás de todos os Grandes Mistérios (assim como de todo teatro da crueldade), havia um drama essencial, uma cosmogonia: como das trevas nasceram o mundo, a matéria, o múltiplo, a vida ou seja, como de um estado de repouso surge o movimento, o conflito. Realizando a performance O Olho da Menina Morta eu procurava dançar a vida e a morte. E no novo roteiro para a performance Rito de Passagem vejo uma sintonia total.
Os alquimistas descobriram esse teatro de símbolos, a linguagem simbólica, gestual e rítmica – daí o fascínio de Artaud pelo teatro oriental (sobretudo, o teatro do Bali), o teatro trágico grego, os Mistérios de Eleusis. Todas essas formas ritualísticas buscavam exprimir ou revelar esse drama pulsante da vida, da morte, da destruição, da criação... E de alguma forma, essa experiência só era possível devido à experiência de um corpo sem órgãos, de um corpo que pudesse gerar novas imagens a partir da sua desconstrução. Artaud já era pós-moderno: ao propor um corpo fragmentado, ou como diria Deleuze, crivado de buraquinhos que se multiplicam, ele já sonhava com a desterritorialização, com a multiplicação de perspectivas e de sentidos.
(...) o corpo sem órgãos não é um corpo morto, mas um corpo vivo, e tão vivo e tão fervilhante que ele expulsou o organismo e sua organização. Piolhos saltam na praia do mar. As colônias da pele. O corpo pleno sem órgãos é um corpo povoado de multiplicidades8.
Não é preciso constituir um sistema, um organismo com identidades fixas. O que existe é um território estilhaçado, fracionado em diversas linhas e viscosidades. É que “o corpo sem órgãos não pára de desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes, intensidades puras.”9 Teatro Coreográfico de tensões caminha para a ativação dessas intensidades, dessas multiplicidades díspares e dissemelhantes, que se conjugam numa progressão infinita com variações de graus e diferenciais.
Na visão de Deleuze e Guattari, Artaud propôs a questão essencial que diz respeito ao modo como se costura e se faz um corpo sem órgãos. É um corpo que precisa passar pelas multiplicidades caóticas, um corpo cheio de intensidades. É um corpo que se livra de um certo asseptismo platônico; não há mais uma lógica de identidade ou princípio de contradição regendo o movimento, e sim uma lógica da multiplicidade. Se eu vejo várias maçãs na mesa, não irei subsumir os significados delas a um único gênero “fruta”, pois as maçãs são seres múltiplos, irredutíveis, singulares. A maçã é água, fogo, língua, nervo, sol, lâmina, fossa, desejo, leopardo, boca, morte. Cada Idéia é uma multiplicidade.
Isso é fundamental na medida em que Artaud recusa a idéia do corpo como um organismo coerente, reflexo e semelhança do sistema do juízo de Deus, o corpo como sistema teológico, que também não é senão o próprio sistema social com suas regras, ordens e couraças disciplinares. Tal repúdio se dá contra o organismo institucionalizado, aquele organismo social que impõe limites e funções limtadas aos nossos corpos. Daí, a idéia de estilhaçar e segmentarizar o nosso próprio corpo, de destruir as suas limitações, de expor as forças ocultas que aí habitam, provocando, dessa forma, a sua própria anarquia diante de um organismo uniforme estratificado. Com tal anarquia, suscitar uma nova experiência de multiplicidade, de diferença que não se deixa reduzir ao princípio da identidade do Mesmo e do Igual.
A anarquia e a unidade são uma única e mesma coisa, não a unidade do Uno, mas uma unidade mais estranha que se diz apenas do múltiplo. É isto que os dois livros de Artaud (Heliogábalo, Tarahumaras) exprimem: a multiplicidade de fusão, a fusibilidade como zero infinito, plano de consistência, Matéria onde não existem deuses; os princípios, como forças, essências, substâncias, elementos, remissões, produções, vibrações, sopros, Números.10
Daí por que haja um enxame de matérias, intensidades, devires ilimitados11, onde o eu sujeito perde toda a sua segurança diante da matéria da linguagem: o ser da linguagem o devora e o absorve numa espécie de dilaceramento.
Não gosto dos poemas ou das linguagens de superfície e que respiram ócios felizes e êxitos do intelecto, mesmo que este se apóie no ânus, mas sem que se empenhe nisso a alma ou o coração. O ânus é sempre terror e não admito que percamos um excremento sem nos dilacerarmos com a possibilidade de que aí percamos também nossa alma...12
Tal visceralidade faz com que vejamos em Artaud uma espécie de artista portador do caos, em que o princípio dionisíaco do disforme, do fundo abissal, predomina sobre o princípio apolíneo da aparência, da proporção e da forma harmônica. Nesse prisma estético, Nietszche veria em Artaud um possuído por Dionisos, deus grego do estraçalhamento, do excesso e da loucura sem fronteiras. É exatamente ainda por esse caminho que Deleuze vislumbra a obra artaudiana, ao dizer que o sentido que irrompe esquizofrenicamente de seus poemas arrebenta a superfície.
A primeira evidência esquizofrênica é que a superfície se arrebentou. Não há mais fronteira entre as coisas e as proposições, precisamente porque não há mais superfície dos corpos. O primeiro aspecto do corpo esquizofrênico é uma espécie de corpo-coador: Freud sublinhava esta aptidão do esquizofrênico para captar a superfície e a pele como perfuradas por uma infinidade de buracos. A consequência é que o corpo no seu todo não é mais que profundidade e leva, engole todas as coisas nesta profundidade escancarada que representa uma involução fundamental. Tudo é corpo e corporal. Tudo é mistura de corpo e no corpo, encaixe, penetração. Tudo é física, como diz Artaud: “nós temos nas costas vértebras plenas, atravessadas pelo cravo da dor e que, pelo andar, pelo esforço dos pés ao se levantarem, a resistência ao abandono, formam caixas, ao se unirem umas às outras.”13
Excessiva e grotesca dissolução, que extravasa os limtes que separam os órgãos corporais. Não há mais um corpo uno e integrado, já que não há mais superfícies que delimitam os corpos, barreiras sobrepostas entre as partes corporais. Os órgãos se fundem em profundidade. Com esse embaralhamento dos limites do corpo, acontece a destruição da própria linguagem. A palavra se divide em sílabas, letras, sons destituídos de significação lógica.
A palavra deixou de exprimir um atributo de estado de coisas, seus pedaços se confundem com qualidades sonoras insuportáveis, fazem efração do corpo em que formam uma mistura, um novo estado de coisas, como se eles próprios fossem alimentos venenonos, ruidosos e excrementos encaixados. As partes do corpo, órgãos, determinam-se em função dos elementos decompostos que os afetam e os agridem. Ao efeito de linguagem se substitui uma pura linguagem-afeto, neste procedimento da paixão: “Toda escrita é PORCARIA” (isto é, toda palavra detida, traçada se decompõe em pedaços ruidosos, alimentares e excremenciais).14
Decerto, o que atiça os sons da linguagem senão as partes fraturadas de seu corpo? Vê-se que há uma analogia entre a destruição dos limites do corpo e a destruição da palavra. “Trata-se menos, portanto, para o esquizofrênico, de recuperar o sentido que de destruir a palavra, de conjurar o afeto ou de transformar a paixão dolorosa do corpo em ação triunfante...”15 O que Deleuze revela é que Artaud, mergulhando na profundidade caótica do corpo, mergulhava também na própria destruição da linguagem, como se essa mesma destruição fosse necessária para o nascimento de uma nova forma de expressão. O que poderá surgir a partir do próprio estilhaçamento do corpo e da palavra?
E da mesma forma como aquilo que feria, há pouco, estava nos elementos fonéticos que afetam as partes do corpo encaixado ou desencaixado, o triunfo não pode ser obtido agora a não ser pela instauração de palavras-sopros, de palavras-gritos em que todos os valores literais, silábicos e fonéticos são substituídos por valores exclusivamente tônicos e não-escritos, aos quais corresponde um corpo glorioso como nova dimensão do corpo esquizofrênico, um organismo sem partes que faz tudo por insuflação, inspiração, evaporação, transmissão fluídica (o corpo superior ou corpo sem órgãos de Antonin Artaud).16
Isso parece ser tão intenso no Taanteatro que todo sentido da linguagem se transmuta. Entre os corpos e as palavras, revela-se um sentido invisível, um incorporal, um infra-sentido. Ou seja, o incorporal é aquilo que atravessa as fronteiras entre as coisas e as proposições. Há alguma coisa quase incorpórea que não se reduz à proposição, tampouco ao objeto ou ao estado de coisas que a proposição designa. Essa coisa é o expresso da proposição, um incorporal na superfície das coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento puro... É o que Deleuze chamou de acontecimento, que não se reduz nem à natureza existente das coisas reais nem à forma expressa dos conceitos e das proposições. O acontecimento é o sentido, que é “neutro, indiferente por completo em relação tanto ao particular como ao geral, ao singular como ao universal, ao pessoal e ao impessoal.”17
Segundo Deleuze, o acontecimento-sentido não tem existência física ou mental, e portanto, é mais como o noema perceptivo (Husserl), que não é a essência de um objeto físico ou a essência de um vivido psicológico, mas, a essência ideal da coisa percebida. O sentido da árvore não é esta árvore física encontrada na praça nem é a árvore pensada por um sujeito lógico, mas sim “a árvore percebida como tal”, a essência “percebida como tal”. Uma entidade quase imaterial que não existe, mas insiste e subsiste nas palavras, nos conceitos e nas imagens mentais, sem se prender ao estado físico ou psicológico desses acidentes.
Assim, o sentido não é uma qualidade sensível: por exemplo, a qualidade do verde que se atribui às folhas. O sentido é o “verdejar”, uma ação, um atributo expresso pelo verbo que indica o estado físico “tornar-se verde”, que justamente se refere ao estado de coisas e que também não pode existir fora da proposição. Porém, ele não é o ser, é o extra-ser, visto que não confunde com a proposição lógica que o exprime nem com o estado de coisas materiais.
No processo criativo esse extra-ser manifesta-nos no “entre”, no limbo das sensações e dos movimentos. Estamos diante de um paradoxo: como se penetra nessa região incorporal através das convulsões de um corpo sem órgãos? No seu Teatro e seu Duplo, são sugeridos os efeitos incorporéos produzidos pelo corpo do artista, palavras insufladas, desarticuladas, vivificadas por uma carga explosiva que explode e libera todas as imagens. Esse empirismo transcendental lança singularidades nômades e ideais, imagens da peste, símbolos do inconsciente num fluxo de imagens materialmente preenchidas de matéria num determinado espaço imaginário.
De modo similar, no processo do Taanteatro, utilizamos de uma gama de experimentações onde o corpo descortina suas próprias virtualidades. Pergunto-me: qual é o sentido do gesto improvisado? Qual é o sentido do meu corpo/sopro nesse espaço invisível da criação? Nossos condicionamentos nos levariam a ver que o sentido é determinado pelo pensamento, já que existe um sujeito que pensa o sentido, nomeiando-o. Assim, poderíamos sempre reconduzir os acidentes e os fenômenos que nos ocorrem a esse pólo normatizador cuja ação se efetiva por um esforço de síntese e censura do Ego, princípio de realidade que nos fornece parâmetros para “agirmos dentro da norma” (Freud-Kant). O sentido seria resultado do recalque operado pela repressão de nossos instintos e pela síntese de uma subjetividade unificadora, como se o sujeito pudesse constituir a sua experiência possível. Mas, é justamente o contrário que ocorre. O sujeito não é constituinte e sim constituído. Constituído por uma associação de idéias que, por sua vez, sofre a ação dos afectos. Não é o entendimento que primeiramente constitui as idéias, mas sim a sensibilidade produtora de afetos que afeta e constitui a produção das idéias. Assim, não é o pensamento de boa natureza/boa vontade que produz o sentido. Antes de podermos atribuir um sentido à algo, confrontamo-nos com o impensável, com o que se dá a pensar e, isso se reflete, na ordem empírica, na nossa impotência de pensamento. Quando digo para mim mesmo “não consigo formular isso”, essa fala traduz o meu encontro com o desconhecido, o não-pensado. Mas, nesse embate mesmo posso extrair a minha força sígnica e poética. Por isso, “na ordem transcendental, a impotência da consciência empírica se traduz como a “enésima” potência da linguagem, e sua repetição transcendente é como que o poder infinito de falar das próprias palavras ou de falar sobre as próprias palavras”18. A condição da experiência real, a gênese intrínseca do pensar e do sentido é essa primeira experiência com o impensável - desse encontro com o desconhecido, Artaud explorou ao máximo.
Nessa nova relação, a verdade/o sentido é caso de produção, e não de adequação. Em outras palavras, o sentido não se ajusta ao objeto que estamos representando, e tampouco é aquilo ao qual o objeto deve se adequar. O sentido é a gênese ou a produção do verdadeiro, e a verdade é tão-somente o resultado empírico do sentido. Nesse sentido, é possível falarmos de um empirismo transcendental. Do encontro com o impensável, a sensibilidade, no plano empírico, gera intensidades, sensações múltiplas e contraditórias, “sensíveis” que nos afetam. Tais afetos fazem com que as nossas faculdades, no plano transcendental, se ponham a criar e a apreender as Idéias. Toda a produção de Idéias, Acontecimentos, Singularidades somente se dá sob esse fluxo diferencial imanente de forças que nos afetam.
Desse modo, o sentido é produzido, fundado e “dobrado” referindo-se a um verdadeiro sem-fundo. “É o caso de dizer: não o reconhecemos mais. Fundar é metamorfosear...” O sentido emerge, ao invés de ser algo descoberto ou representado. É o experimentado, o exprimido por uma ação (nesse caso, o nosso dançar), o verdadeiro loquedum (aquilo do que se fala), aquilo que não pode ser dito no uso empírico e só pode ser dito no uso transcendente”. Daí por que o sentido não possa ser capturado em função de uma lógica das representações. Ele nos escapa. É daí que emerge a virtualidade da Idéia, livre e contraditória, virtualidade que não possui um correspondente no plano do conceito. E que sempre pode se diferenciar em novas relações, já que não é simplesmente um decalque/cópia de uma essência pensada. A Idéia de Deleuze é essa instância da multiplicidade que “não suporta nenhuma dependência em relação ao idêntico no sujeito ou no objeto”.
A Idéia e o “aprender” exprimem, ao contrário, a instância problemática, extraproposicional ou sub-representativa: a apresentação do inconsciente, não a representação da consciência. Não é de admirar que o estruturalismo, nos autores que o promovem, seja tão frequentemente acompanhado de um apelo a um novo teatro ou a uma nova interpretação (não-aristotélica) do teatro: teatro das multiplicidades que, sob todos os aspectos, opõe-se ao teatro da representação, teatro que não deixa mais subsistir a identidade de uma coisa representada, nem a de um autor, espectador ou personagem em cena, nenhuma representação que possa, por meio das peripécias da peça, vir a ser objeto de uma recognição final ou de um recolhimento do saber, teatro de problemas e de questões sempre abertas, levando consigo o espectador, a cena e os personagens no movimento real de uma aprendizagem de todo o inconsciente, cujos últimos elementos ainda são os problemas.19
Notas
1 Deleuze e Guattari, Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Editora 34, 2007, p.35.
2 A minha tradução desse trecho é feita a partir de Antonin Artaud: Oeuvres complètes I, Gallimard, 1984, p.123.
3 Artaud, Heliogabalo ou o Anarquista Coroado, Assírio e Alvim, 1982, p.80.
4 Escritos de Antonin Artaud, Ed L&PM. p.161.
5 O Teatro e seu Duplo, Ed. Max Limonad (trad. Teixeira Coelho), 1987, p.145.
6 Ibid., p.145.
7 Ibid., p.44.
8 Deleuze e Guattari, Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Editora 34, 2007, p.43.
9 Deleuze e Guattari, Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Editora 34, 2007, p.12.
10 Deleuze e Guattari, Mil Platôs: capitalismo e es vol. 3, Editora 34, 2007, p.20-21.
11 Para Deleuze, a arte é uma máquina de guerra, um plano de forças e singularidades nômades em conexão com outros planos.
12 Deleuze, Lógica do sentido, Perspectiva, 2003, p.87.
13 Ibid., p.89.
14 Ibid., p.90-91.
15 Ibid., p.91.
16 Ibid., p.91.
17 Ibid., p.20.
18 Deleuze, Diferença e Repetição, EdGraal, 2006, p.224.
19 Ibid., p. 272-273.