Ritos de Passagem
por Ana Beatriz Almeida
Um equívoco freqüente ao pensar sociedades é imaginá-las como conjuntos de organismos fixos. Uma vez que sociedades, em sua base, são formadas por seres humanos mutáveis, a essência da vida social reside na mediação entre as mudanças individuais de seus integrantes inseridas numa coletividade mais abrangente.
Para promover tais mediações, criam-se rituais, que, através da manipulação de símbolos relevantes para o coletivo, gerenciam as transições de estado dentro de uma comunidade. Os rituais, inicialmente observados sob o aspecto do exótico, sempre foram o foco da antropologia. Com as pesquisas de Arnold Van Gennep iniciou-se um estudo dos rituais enquanto chave de compreensão das sociedades em que vivemos. Entre as contribuições importantes de Gennep encontram-se a esquematização do ritual, o olhar sobre o sagrado e a relevância dos ritos na sociedade. O autor observa no ritual “o aspecto mágico-religioso de cruzar fronteiras”, e revela como a prática do ritual inaugura um lugar de exceção entre o cotidiano e o mítico. Distingue três fases que constituem a estrutura dos rituais, nas mais diversas comunidades, a saber: separação, liminar e incorporação.
Na primeira fase identifica-se uma cisão. Devido a percepção de um desajustes nas relações sócio-culturais entre um indivíduo (ou grupo) e seu coletivo social, surge a necessidade de promover uma mudança de seu atual estado social para um outro. A permanência do individuo (candidato) no seu estado atual tornaria problemática ou confusa a situação da própria coletividade. Por conseqüência, a mudança do candidato por meio de um ritual visa a manutenção do próprio coletivo. Este estabelece um momento de separação e afastamento para imprimir no candidato uma vivência extra-cotidiana. Alguns pesquisadores vêem esta segregação como momento de destruição simbólica do status social do candidato. Na primeira fase, ao se afastar do sistema cotidiano as ordens e os valores sociais do candidato foram simbolicamente destruídas.
A passagem para a segunda fase constitui uma experiência-limite. O candidato adentrou um território desconhecido. Não pode mais viver o passado, mas tampouco está apto a vivenciar o estado futuro e almejado. O estado liminar constitui um momento crucial no processo: quase isento das características dos dois outros momentos, foge aos sensores determinantes de hábitos e costumes cotidianos. A principal característica desta fase é a suspensão de ordens simbólicas, hierárquicas e status social na coletividade, substituídas por um sistema menos complexos, com funções mais definidas e claras, com hierarquias mais planas. Nessa fase cabe ao candidato unicamente a submissão aos processos em curso para mudar de estado e aos demais integrantes do coletivo garantir que esses processos sejam realizados.
A terceira e última fase ritual – a incorporação ou reintegração – consiste na volta do candidato à realidade cotidiana nutrido da força ritualística. O acesso à dimensão ritual habilita o individuo a assumir seu novo papel, por compreender de outra forma a vida em comunidade.
Assim, a eficiência nas mudanças de estado em uma sociedade está intrinsecamente conectada à compreensão de sua estrutura ritual e a existência de uma vivência integral dos momentos de passagem. Ao mesmo tempo, a integração de seus membros com a dinâmica vigente depende da permeabilidade limiar dentro da coletividade .
O trabalho de Turner levou a grandes progressos no entendimento da complexidade ritual. Turner centrou seus estudos na fase liminar. Chamava-a de Communitas. Seu interesse residia principalmente no reagrupamento das estruturas simbólicas no momento da experiência liminar. A organização rudimentar de tal estado expõe os candidatos de modo inexorável às forças rituais e a uma submissão a uma consciência mais abrangente, como se estivessem sob influência de uma razão sagrada detentora de uma linguagem maior que deixou de existir, mas que permeia a realidade de forma ampla. E justamente para poder assumir suas novas posições na existência cotidiana é que necessitam acessar essa matriz ancestral simbólica. No entanto individuos ou grupos que pretendem alcançar um novo estado passam por provações e precisam superar limites (tal como o casamento, festa de quinze anos, luto etc). Entre os ritualizados existe uma certa cumplicidade e uma subserviência à autoridade ritual. A condição liminar modera o ego e o orgulho daquele que ainda não atingiu a condição desejada, que por sua vez só poderá ser alcançada ao final do processo. Segundo Turner (1974) : “A liminaridade implica que o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está no alto deve experimentar o que significa estar em baixo.” ( p. 119)
A fase liminar constitui uma organização ambiental que excede o Estado, mas relaciona-se com ele principalmente em forma de oposição. Sua ordem gera paradigmas e significados densos, que alimentam, quando diluídos, a manutenção da estrutura social. Essa capacidade é conferida pela fonte simbólica – relacionada a uma verdade ancestral mítica - exercida pelo ritual na vida social mais ampla. Logo, pode-se dizer que os símbolos organizados, reformulados e seus substratos que compõem a vida social encontram-se nos rituais de forma mais condensada bruta. Pode-se entender aí uma história matriz da sociedade que muitas vezes a explica. Turner exemplifica essa dubiedade Turner através da representação mítica do homem na sociedade Ashanti em Gana ( matrilienear ), onde os laços entre pai e filho são inferiores, o ntoro ( sêmen) é comparado com a água, o espírito , a vida , o que chamam de Deus do Céu. Com isso possibilita o duplo antagônico entre eu-mítico e eu-cotidiano que permite ao forte a experiência liminar e ritual de ser frágil- da mesma forma o socialmente frágil encontra respaldo para sua condição vulnerável na experiência liminóide , numa força liminar. Como explica Turner (1974), esses dois planos se intercomunicam e retroalimentam: “Mais uma vez encontramos os seres estruturalmente inferiores considerados moral e ritualmente superiores, e a fraqueza mundana, como poder sagrado “( p.152)
Bibliografia
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974
TURNER, Victor. Dramatic ritual/ritual drama: performative and reflexive Anthropology. In: TURNER, Victor. From ritual to Theatre. New York: PAJ Publications, 1982
TURNER, Victor. Dewey, Dilthey, and drama: an essay in the Anthropology of experience. In: TURNER, Victor; BRUNER, Edward (Org.). The Anthropology of experience. Urbana , Chicago : University of Illinois Press, 1986
TURNER, Victor. The Anthropology of performance. In: TURNER, Victor. The Anthropology of performance. New York : PAJ Publications, 1987
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.