Reflexão
Por Cleia Plácido
Cleia em ensaio de Rit.U
O rito é um rebento. O roteiro é uma bússola no meio do mar aberto. O rito é uma possibilidade de abrir as comportas de desejos escondidos, escancarar marcas, mágoas, paixões, aspirações. Foi uma experiência única, que jamais conseguiria repetir, íntima e compartilhada entre iguais. No rito eu estava mais focada na ânsia de vivenciar plenamente o que me propus a viver do que o que isto produziria em termos de impressão nas pessoas da rua, que desenhos se configuraria no espaço e/ou no tempo; houve uma suspensão do tempo. Não me preocupei se os colaboradores do grupo estavam seguindo fielmente o roteiro pré-estabelecido, ele tornou-se apenas uma referência. Meus amigos generosamente personificaram e deram voz às minhas pressões internas e externas, tornaram-se pais autoritários e implacáveis, credores, críticos, avaliadores, usurpadores de sonhos, sugadores de fantasias...
Morri, vivenciei a morte que era uma alternativa real em minha vida naquela fase, me joguei num generoso rio de gente, rio de cura, de mãos e braços e colos, e cantos e cheiros... De acolhimento, cheguei até minha essência, lembrança personificada em três figuras maternas, avós, que sempre me deram um chão, um rumo, onde sempre senti que independentemente do que fosse ou fizesse na vida, seria acolhida, seria curada. Uma do céu, outra da terra, outra que nem me viu nascer, todas mortas, mas bem vivas em minha história, vestígios de uma ancestralidade.
Mas a transformação não estava ali, no acolhimento, estava no meu contra-ataque, no retorno, em meu impulso de vida, no reencontro e confronto com meus fantasmas. Esta transformação desejada ainda reverbera, e pulsa a cada momento.
Outros ritos vieram e o meu ficou quietinho em um canto de minha memória. Então veio a montagem, a síntese e a apresentação. O que é uma apresentação? É o encontro com o "outro": público-sociedade, ao desenho no espaço e no tempo, à elaboração, a um roteiro. Mas, quando a apresentação se torna um "Rito", em que compartilho com o outro uma transformação, este outro se torna o colaborador generoso, e ao mesmo tempo aspirante à transformação. O encontro com este "outro" público torna-se tão significativo e importante, quanto um Rito. E no palco fomos nos apropriando, personificando e corporificando uma poética monstros, potências, desejos. Ficamos gigantes. Tornamo-nos um corpo só, e ao mesmo tempo, aquela centelha de essência daquele Rito realizado em 09 de julho de 2010 ás margens do rio Anhangabaú.
Morri, vivenciei a morte que era uma alternativa real em minha vida naquela fase, me joguei num generoso rio de gente, rio de cura, de mãos e braços e colos, e cantos e cheiros... De acolhimento, cheguei até minha essência, lembrança personificada em três figuras maternas, avós, que sempre me deram um chão, um rumo, onde sempre senti que independentemente do que fosse ou fizesse na vida, seria acolhida, seria curada. Uma do céu, outra da terra, outra que nem me viu nascer, todas mortas, mas bem vivas em minha história, vestígios de uma ancestralidade.
Mas a transformação não estava ali, no acolhimento, estava no meu contra-ataque, no retorno, em meu impulso de vida, no reencontro e confronto com meus fantasmas. Esta transformação desejada ainda reverbera, e pulsa a cada momento.
Outros ritos vieram e o meu ficou quietinho em um canto de minha memória. Então veio a montagem, a síntese e a apresentação. O que é uma apresentação? É o encontro com o "outro": público-sociedade, ao desenho no espaço e no tempo, à elaboração, a um roteiro. Mas, quando a apresentação se torna um "Rito", em que compartilho com o outro uma transformação, este outro se torna o colaborador generoso, e ao mesmo tempo aspirante à transformação. O encontro com este "outro" público torna-se tão significativo e importante, quanto um Rito. E no palco fomos nos apropriando, personificando e corporificando uma poética monstros, potências, desejos. Ficamos gigantes. Tornamo-nos um corpo só, e ao mesmo tempo, aquela centelha de essência daquele Rito realizado em 09 de julho de 2010 ás margens do rio Anhangabaú.
Pequeno Depoimento
Por Vlamyr Sybilla
Vlamyr em ensaio de Rit.U
O devir me remete ao vir a ser, o instante já, que quando você se dá conta, já passou, num ciclo ininterrupto e infinito.Cada momento, cada segundo, um universo em si que se perpetua numa eterna e constante impermanência, onde o movimento reina soberano. Me tornar SIBYLLA é entrar nesse espaço de questionamento e desterritorialização do fixo e afirmar, desejar e suportar o impermanente, mutante e irrepetível. Aceitar que eu seja uma pessoa nova a cada momento. ZERAR. Me libertar dos códigos clássicos da dança, deixar de viver à sombra de Barishnikov e viver à luz de mim mesmo. Ser eu a dança e deixar minha marca no mundo. Reafirmar e resgatar o pacto, aliança e parceria com a criatividade dionisíaca, apoiada pela organização apolínea, num constante e dinâmico diálogo tensivo. SER PENTAMUSCULAR. Abrir mão de uma filosofia de vida platônica (crendo numa essência a priori) e suas respectivas escolhas, comportamentos e atitudes e me tornar aquilo que sou, abraçando a filosofia de Nietszche, me reconstruindo, com uma vontade enorme de deixar que minha potência desabroche com suas novas e respectivas escolhas, comportamentos e atitudes. De toda a experiência com os ritos, treinamentos e espetáculos que vivemos, isso é o que pulsa em primeiro plano. Não dou conta de fazer uma análise mais elaborada. Talvez, no momento, deseje que minha subjetividade se manifeste e se legitime per se, com sua ancestralidade herdada e eletiva. Sinto que escrevo melhor com o corpo no espaço, do que com palavras no papel. Sinto também que é um caminho sem volta. Abraço a TAANTEATRO e sua metodologia numa nova, mais rica, criativa, arriscada e instigante aliança que em última análise é a oportunidade de abraçar a mim mesmo e tudo aquilo que posso ser. Obrigado a toda equipe (Wolfgang, Maura, Isa, Valter, Bia, Rodrigo) e todos os colegas do NUTAAN que estiveram juntos comigo nessa experiência intensa, transformadora, singular. Foi um privilégio que segue reverberando maritmicamente. Beijo no coração de todos.
La transición de los ritos de pasaje para el rito colectivo
Por Rodolfo Osses
La transición de los ritos de pasaje para el rito colectivo fue una experiencia compleja e intensa.
La primera tarea fue diseñar el Romeiro colectivo, para esto se formó un nucleo dramatúrgico de ocho personas, que con el acompañamiento del cordinardor debian hacer una cuidadosa selección de momentos y pasajes tensivos de cada uno de los 17 ritos de pasajes experimentados.
El núcleo tambien debía tener en cuenta para esa selección y composición dramaturgica los siguientes criterios:
- que tienen en común esos 17 rituales.
- que se repite en cada uno de ellos.
- que se destacó.
Y la relación con la ancestralidad y el medio urbano, que es el tema central de proyecto NUTAAN 2010.
Luego de varios encuentros en los que asistieron los videos de cada ritual, se discutió, de debatió, y por fin se llegó a conclusiones en común, el nuevo roteiro del nuevo rito de pasaje estaba pronto.
Hubo en todo este proceso dos herramientas fundamentales y que fueron de gran ayuda: el Diccionario de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant, que facilitó la comprensión simbólica de lo que seleccionaba y componía; y el roteiro grade, que es de gran ayuda para organizar un rito en sus tres faces (pre-liminar, liminar y pos-liminar) y subfaces con todos sus componentes como coreografía, meta-coreografía, atmosfera tensiva, etc.
E l siguiente paso fue presentar el nuevo roteiro al resto del grupo. Personalmente veo aquí una de las instancias mas complicadas. Fue difícil comunicar (emitir-receptar) el nuevo roteiro a los demás performers. Creo que lo que más costó comprender fue la escena de las cascas, entender el sentido de ese descascarse. Descascarse de que? Fue bien rico aclarar esas cuestiones más conceptuales y percibir como esa claridad potenciaba los cuerpos de las performers de asumir esas danzas. Desacascarse.
Aclaradas varias dudas… no todas… fuimos a los hechos. Era importante conservar esa frescura performática de los rituales en donde el sentido termina de decantar en el hacer. Arte de acción. Y los devenires de esas acciones generarán nuevos interrogatorios y esas nuevas preguntas dejan los huesos excitados.
Realizamos el nuevo rito de pasaje colectivo dos veces, una dentro de la Galería Olido y otra en plaza Roosevelt. Este último espacio es bien extraño. Todo concreto, todo cemento. Abajo uno parece estar en el subsuelo, enterrado. Pero por una rampa caracol uno puede subir a una gran plataforma también de cemento y alguna que otra planta intentando sobrevivir. Desde allí arriba se abre un bosque de predios de distintas épocas, distintas arquitecturas y hacia la rua Augusta uno puede ver un río de industria automotriz fluyendo y moviendo o atorando la ciudad. No se me fue más de la cabeza la imagen que transmitió Wolfgang estando en ese sitio. La imagen de esa gran nave de concreto y sus alderedores como ruinas arqueológicas de una “moderna” ciudad de una especie extinguida llamada ser humano.
De la experiencia de esos dos ritos colectivos surgió un concepto llave para RIT.U: el devenir monstruo.
Períodos de ensayos.
En esta etapa se buscó organizar en otro espacio lo acontecido en plaza Roosevelt y también profundizar y potenciar escenas que ya empezaban a definirse. Fue muy interesante y divertida esta etapa ya que se trabajaron las escenas por bloques específicos y también con distintos coordinadores como Valter, Isa, Wolfgang, Rodrigo y Maura, lo que nos permitió a los performer poder apreciar y compartir distintas texturas, sutilezas, matices y visiones de dirección escénica. Esto lejos de generar confusiones, mixturas o un “collage” de direcciones, sólo nos permitió conocer la diversidad humana del equipo coordinador de la compañía. Hubo un criterio claro y es como se posiciona Taanteatro ante la danza, la performance, el arte… el hombre.
De las funciones.
Estrenar una pieza para una persona que trabaja con las artes escénicas es siempre muy importante y placentero. El estreno de RIT.U fue muy importante, gusté del hecho de encontrarme por primera vez con todos los lenguajes, palco, luces, humo, video, escenografía, público horas antes del estreno. Había claridad de lo que se debía hacer y lo que se quería decir. Un buen calentamiento, mandala, un mierda y dar sala.
Lamentablemente no puedo hacer un relatorio completo de esta función. Ya que apenas entré a escena en la apertura de la pieza sufrí un accidente en el mentón que me dejo fuera de juego y triste. Mas triste que el tango “Los mareaos”. Pero creo que fue una experiencia grupal intensa.
De mi parte no hubo celebraciones, pensaba festejar y beber algo en el Piolin o por la Roosevelt o por la Augusta, pero por el contrario termine en el pronto socorro de Santa Casa curando el mentón. Pero no me quejo, me acompañaban dos personas hermosas Topo y Siriguela. Y tampoco me quejo por que alem de la tristeza el accidente me hizo refleccionar sobre la preparación del Performer antes de entrar a escena y sobre la administración y el manejo energético. Por que la escena demandaba una energía explosiva. El Performer debe colocar esa explosión demandada pero también debe manejarla con apertura, atención, solidaridad, sensibilidad y precisión, y ese manejo se debe entrenar. Creo que me concentré de más antes de entrar a escena, y eso me cerró.
De estas reflexiones concluyo:
Concentración ≠ Cuerpo Pentamuscular
Atención = Cuerpo Pentamuscular
Las funciones siguiente fueron hermosas y emocionantes. La ansiedad del estreno se había desvanecido. Se ajustaron algunas cuestiones relacionadas al tiempo y al espacio y tambien sobre transiciones de escenas. Maura hizo un observación y un modificación en la transición de la devoración de los monstruos para la danza de la potencia, que me pareció muy precisa y que le dio un sentido más cercano al rito; pidió a los Performer que se trocaran de figuriño en esa transición y que asumieran esa acción en el palco como una danza ritual. También percibí una mayor comunicación y troca con el publico en estas funciones. Creo que la presencia del público generó más claridad a cada Performer con respecto a su jardín suspenso. Al haber claridad y sentido en esas performances individuales el final de la pieza tomo mucha fuerza. Le público es convidado a degustar de cerca la particularidad de cada Performer en donde ancestralidades diversas se abren y florecen. Pienso en el final de RIT.U, en los jardines, y lo vivo como una decantación de la danza de la potencia en cada cuerpo. Como un desvanecerse en esa potencia. Desvanecerse y retornar otro.
A veces no se quien soy.
“Eu não sou eu nem sou outro, sou qualquer coisa de intremedio” Escribió Pessoa.
Agradezco a todo el NUTAAN 2010 por acompañarme en tantas transformaciones.
A veces no se quien soy.
Fui tantos otros en cada ritual.
Fui y seré perro.
Fui hombre, fui mujer, fui madre, fui madre gravida, fui madre gravida y tuve hijos.
Fui suave, fui violento.
Fui piedra, aire, fogo, agua, lama.
Fui masculino, fui femenino.
Fui travesti, fui travesti y dance en un putero.
Fui río.
Fui alimento y me devoraron, y devoré y…
Dancé.
Performance no Nutaan e no Rit.u
por Chiu Yi Chih
Vivendo e realizando os ritos de passagem do Nutaan em espaços do meio ambiente urbano, estava explorando uma zona indistinta de mim mesmo. Eu me sentia como que guiado por uma força numinosa. Meu corpo era atravessado por cacos, corpos, energias, asfalto, soluços, ruídos de carro, sangue, ar contaminado, águas, cimento, cutiladas do Outro.
Interagi como performer com as virtualidades anárquicas de um imenso oceano. Nunca soube para onde o rito me conduziria embora tivéssemos o roteiro traçado. E o “enigma” era justamente isso: viver esse estado intensivo entre as coisas e as interpretações que delas fazemos. A partir daí comecei a intuir melhor o que é o corpo zerado, o corpo morto, o corpo sem órgãos, o estéril, o inengendrado, o deserto cheio de vida. Habitar o estado intervalar, o “entre” constituía-se como um risco no próprio campo da criação.
Nesse processo de experimentação, improvisação e contato com o público, alarguei meu campo de percepção, rompi com minhas couraças musculares, testei o meu ego, destrinchei minhas vísceras. Nesse processo xamânico/artístico meu corpo foi estraçalhado, devorado pelos outros corpos e restaurado em vários cortes esquizofrênicos. Banhei-me nas águas de um imenso rosto, cujas vidas, identidades, territórios e forças subverteram minha própria identidade. Como numa viagem iniciática, meu corpo velho foi varrido, desci aos infernos e subi aos céus. Não há nada de metafórico nisso. O corpo sofria, resistia. A cada treinamento na Galeria Olido, a minha musculatura cada vez mais internalizava os exercícios do Poder da Serpente, da Mandala e do Marítimo. Como uma esponja de cristal, absorvendo movimentos de queda, suspensão, tensão: a ancestralidade e o meio ambiente urbano, a natureza e a civilização confabulavam com minhas vértebras.
O conceito de pentamusculatura permitiu a todos os performers embarcar nessa viagem odisséica. Dioniso & Shiva abriram os portões. Matéria & Sol trabalhavam dentro de cada um. Culminamos na apresentação do Rit.u na Galeria Olido. O espetáculo foi um rito dentro dos ritos. O chamado Rit.u sintetizou as experiências que tivemos nos espaços urbanos da cidade a partir de um roteiro dramatúrgico.
No corredor da Galeria Olido, espectadores desavisados surpreendidos pela entrada de um adestrador tirânico e quatro cães negros. Enigma provocado. Na sala, a dança do descascamento onde os performers sutilmente emergem do sono profundo. Condensavam-se ao longo do rito coletivo/individual impulsos e tensões em formas caosmóticas. Todos os performers (Chiu, Zedú, Lilian, Rodolfo, Carol, Adriana, Janaína, Alda, Ana Beatriz, Ana Patrícia, Cléia, Vlamir, Roger, Simone e Tatiana) destilavam o seu ser individual sem perder o foco coletivo. Na dança-caminhada. Na dança-devoração. Na dança-potência com o seu estilo diagramático-pictográfico. E, ampliando a noção de espetáculo/apresentação, os performers mergulharam no Jardim suspenso criando brechas na realidade cotidiana.
Obra aberta, heteróclita e inacabada, o Rit.u revela possibilidades de ser que vão além do mero espetáculo. Propicia o diálogo com o Outro. Território multiplicado e re-significado, dilata o horizonte de nossas singularidades.
[Des]construindo o Rit.U
Por Simonne Xavier
Simonne em ensaio de Rit.U
A A complexidade do processo do rito de passagem permeia espaços que vão além daqueles que somos capazes de perceber racionalmente, apesar de participarmos como elementos centrais, catalisadores do processo como um todo. Ao mesmo tempo em que é rico sob aspectos diversos, nos leva a uma reflexão muda, interna, contemplativa. Cada rito de passagem que realizamos, descobrimos um universo de potencialidades que, mesmo seguindo a individualidade do performer ritualizado, invade o âmbito universal de todos os indivíduos. E o ritual que é de um, passa a ser de todos. Por quê? Não tenho a pretensão de descobrir, pois qualquer definição sobre uma experiência não passa de limitação, recorte controverso diante uma realidade plural. Esse é o tipo de questionamento que mais vale em aberto, em estado de criação constante, no qual a cada tentativa de resposta, descobrimos novos e novos aspectos, que nos enriquece tanto quanto a coisa em si, neste movimento pressuposto infinitamente.
Ensaio de Rit.U
Rit.U e o seu processo surpreende por isso, pelo desafio de trazer através de todas as musculaturas, uma fenda constituída no tempo e no espaço, capaz de atingir o que há de comum em todos nós. O que estamos ensaiando então? Tantos paradoxos diante de um fato que, até encontrar Taanteatro, era algo já compreendido. Eis que estamos diante da possibilidade de redescobrir o que é criação, o que é ensaio, o que é encenação, o que é dinâmica de interação com o público, o que é jogar com o parceiro em cena. Todos os referenciais foram alterados. Surge a incrível sensação de experimentar os primeiros passos, quando ainda estamos a engatinhar...
Co Construção do roteiro grande Rit.U, ensaio, repetição, marcação... Como entrelaçar conceitos básicos a uma estrutura completamente revolucionária? Talvez a minha mudez venha dessa perplexidade que o desafio propõe. Todas essas ações pré-concebidas como alicerce de uma apresentação cênica, se tornam relativamente pró-forma e passam a constituir uma parcela muito pouco significativa em relação ao todo. Apesar de ser altamente necessária... Mas fica a pergunta: como ensaiar algo que não está ao nosso alcance? Não sabemos os elementos que irão permear a nossa pentamusculatura em um futuro próximo ou distante. Essa possibilidade só existe no instante presente. Talvez a questão seja treinar a invasão neste espaço tão estranho ao nosso cotidiano, descobrir acessos internos e externos para transformar as relações pentamusculares de forma consciente. Não é uma tarefa simples, ao contrário... Requer muito mais do que disposição física – convoca a entrega da psique – algo extremamente delicado e muitas vezes não tocado durante todo um período de vida.
Se Será que questionar, procurar respostas, justificativas, comandos... Tudo isso não faz parte da resistência que se apresenta diante algo que nunca foi vivido? A palavra é coragem. Há que existir a entrega da alma, de todos os corpos que co-habitam o ser em criação. Será que todos se entregam? O mais chocante é perceber que essa pergunta alcança algo que vai muito além da prática em si, ela toca o processo da vida. Há que se ter muita coragem para vida. Rit.U é isso... Uma celebração do viver presente, inteiro e autêntico.
A transição dos ritos de passagem para o rito coletivo de passagem
Por Carol Greco
Carol em seu Jardim Suspenso
Achei muito interessante como se deu a construção do rito coletivo. A equipe de dramaturgia e coordenador através de uma vasta análise dos 17 ritos de passagens realizados, fotos, vídeos e impressões relatadas pelos performers; conseguiram organizar uma nova grade para o Rito Coletivo, o qual a meu ver foi construído com muita sensibilidade e cuidado, enfatizando as características mais relevantes dos ritos individuais, aspectos e elementos recorrentes em todos os ritos. Sendo assim a proposta do novo Rito parecia autoria de cada performer. Acredito que houve uma grande identificação de todos para com este.
Os participantes do Nutaan mostraram-se interessados pelo Rito coletivo de passagem, tivemos grande ansiedade por entendê-lo, principalmente para sua realização prática, algumas questões precisaram ser bem definidas e esclarecidas para com todos; como exemplo, a definição das cascas sociais presentes no início do rito. Como nesta etapa do processo todos os integrantes passam a ser protagonistas, algumas resistências apareceram, nem sempre as idéias eram compradas com empenho e vontade. O grupo demorou a relembrar uma importante essência de um Rito de passagem, que descrevo a partir do trecho do livro Taanteatro – Teatro Coreográfico de Tensões:
...”Um trabalho coletivo realmente só existe se cada um entra de cabeça no trabalho individual. Não é necessário negar o ego ou a personalidade individual. É preciso uma dose significativa de generosidade consigo mesmo e com os outros”... (Taanteatro pág. 147).
Carol "suspensa"...
Quando os performers passaram a refletir sobre as questões que estávamos enfrentando e passaram a se dispor ao trabalho, voltamos a habitar o clima de grande partilha que havíamos conquistado durante os rituais anteriores e assim conseguimos vivenciar este novo Rito de forma intensa e prazerosa, fazendo das barreiras estímulo para nossas ações criativas.
O período dos ensaios:
Este período de ensaio foi marcado por grande ansiedade, o que considero normal quando queremos realizar um bom trabalho, uma criação forte. Mas, acredito que este sentimento fez com que o fluxo de trabalho fosse bloqueado em alguns momentos, muitos egos foram aflorados e novamente a dificuldade de embarcar em um trabalho coletivo passou a aparecer. Em muitos dias de ensaio, quando a figura do coordenador não estava presente por seus motivos necessários, era nítido que o grupo necessitava de uma “autoridade” para a realização das atividades propostas, o que me fazia até mesmo relacionar estes acontecimentos com as figuras que apareceram em nosso rito coletivo: a necessidade de estarmos sob o controle de alguma força maior. Estávamos agindo da mesma forma com que nós mesmos quisemos questionar e abordar sobre a sociedade. Como somos contraditórios!
As faltas e atrasos também foram presentes neste momento do processo, mesmo assim conseguimos cumprir o cronograma esperado. O dia em que conseguimos ter fechado o espetáculo foi um alívio, talvez a sensação de parir depois de meses de gestação.
No geral, todos se mostraram empenhados para que conseguíssemos levantar o espetáculo Rit.U, mesmo havendo divergências, entender que a obra é o foco principal, acredito ter contribuído para o desenvolvimento de nosso Rito Urbano.
As apresentações:
Na estréia realizamos o espetáculo com bastante intensidade, mas também com muita ansiedade, fazendo com que este estado energético repercutisse em algumas cenas, como, por exemplo, na caminhada e venda dos órgãos e na dança da potência. Tivemos alguns acidentes com objetos de cena e com um de nossos companheiros (Rodolfo). Mesmo com estes imprevistos fomos recebidos pela platéia de forma bem generosa. Finalizamos o Rit.U conscientes dos acontecimentos, entretanto felizes por termos vivenciado este momento.
No segundo dia de apresentação, já estávamos mais familiarizados com o espaço e até mesmo com o roteiro das cenas do espetáculo RIT.U, o que fez com que pudéssemos aproveitar e degustar mais cada momento, como nas experiências vividas durante o processo dos ritos de passagem, porém é claro que ainda ansiosos com a presença de um público.
Com as indicações e orientações vindas dos coordenadores e dos próprios performers acredito que a cada dia conquistamos uma maior qualidade no trabalho. Foi muito bom compartilhar com o público esta etapa do processo do Nutaan, essa musculatura estrangeira foi um importante elemento que potencializou nossa pesquisa.
A meu ver as apresentações foram bem sucedidas, no entanto acho que elas podem enriquecer-se quando os integrantes tiverem uma maior resistência física e principalmente um maior diálogo e conexão em cena. Qualidades estas que podem ser conquistadas com o fazer do trabalho e um amadurecimento individual e coletivo.
Nutaan em Rit.U - Dança da Potência
Encarar as apresentações como um grande rito em que todos são protagonistas: performers, iluminador, diretor, assistentes, público, etc... Deve ser uma maneira importante de dançar uma obra artística.
Enquanto performer ainda sinto muitas dificuldades em ampliar meus gestos corporais e danças coreográficas, mas acredito que minhas conquistas são adquiridas através da verdade e desejo cênico.
Jardín suspenso
Por Ana Patricia Marioli
Suspendido por ese rodeo de aliento,
un metro cuadrado de privacidad dentro de este mundo del “gran cotidiano”
la “Gran Costumbre” –dirá Cortazar.
Un jardín secreto que nos contiene, nos envuelve y nos protege.
Aquella música que te extrae del “ahora” y te hace viajar tan rápido como la luz, visitando viejos tiempos.
Ese objeto que te inspira la creatividad,
aquél material que simboliza tu esencia,
aquella postura que da placer de exponer.
Un jardín, tu edén.
Pienso ahora y me atrevo a describir un poco de “mi suspenso”, digno de variedad y mudanzas todas.
Un “jardín suspenso” muchas veces es todo lo que una persona tiene.
Tan pequeño como su cuerpo pero tan amplio como su vida.
Dale que va…
Visito inesperadamente un sitio que hallo propicio para descansar, comienzo a observar sus detalles. De pronto escucho un tema que hacía mucho que no sentía, y me recuerda a mi infancia, veo mi cabello de cinco-añera corriendo a los brazos de papá en su trabajo. Vaso de pócimas mágicas cambiando de color, química… olor a química.
De pronto observo un poco más y veo diseños de un gran amigo que por un momento de mi vida procuro llenar mis espacios de artista con grabados en blanco y negro. Siento el aroma a sándalo que sale de aquel incienso vermelho. Allí tomo de mi copa de vino para brindar por los libros que acabo de encontrar y veo Un mundo Feliz, y recuerdo la hoguera y el tapete frente al cual lo leí completo. Sabiendo que pase muuuucho tiempo pensando en nunca leer algo semejante me río de la gran Nadja y Bretón hablando de la belleza CONVULSIVA.
Pajarona estudiosa... comienzo a procurar mis otros extremos… y caen los vicios de aquella línea temporal de la mano de un cigarro amigo y el chisme femenino. Me encuentro mujer en plena lucha, recuerdo el queso y dulce con mates hirviendo de la que me dio su nombre y “Anna” danzando en mi primera Visita Paulista. El graffiti, la foto que saqué de aquel graffiti tan real, tan cotidiano;
Digo, eh digo, eh soy Ana, digo, Mau, eh digo Ca, Ro, Fla, Li, Os, Mel, Co, Pe, Vla, Va, Is, Top, Ad, Ca-otra-, Ro- el otro-, Ze, Sim, Ja, Cle, Wolf, Hi, Chi, Ald, Ta, Bi, Ren, van.. y dale que van Siri.
Así recuerdo cuantas veces pensé que era malo fumar, viendo el humo salir de aquellos labios de intestino en Venta!… pero precarios. Fermentos de medicina natural, fermentos de arte, fermentos de “la idea”… esa, que se te ocurre cada un tiempo para lembrar que… por eso vale la pena y… por aquello no precisa preocuparse. Concluyendo el hermoso edén por el que viaje, con la más reciente de las grandes frases.. proveniente de un padre… un padre digno del amor de su hija… “el mundo fue hecho para vos, debes disponer de el como si fuera todo tuyo” Ahh!!! y otra reciente, de aquella abuela maestra “siempre hay que recordar que la vida es puro teatro”…
Si pudiera explicar que es un jardín suspenso, es decir como es mi cuerpo y que contiene mi vida, comenzaría así, escribiendo esto.
No precisa entenderse el suspenso de la pequeña hormiga que soy, puede degustarse… que es algo distinto.
Ahora bien, de todo esto selecciono aquello que retorna siempre y lo danzo, danzo mi jardín.
Taan agradecida de danzar dentro de mis retornos, me junto a la feria de jardines suspenso al final de nuestro espectáculo RIT.U y me regalo… Te me ofrendo.
Eterno Retorno
para Wolfgang por Patricia Marioli
Wolfgang testando seu equipamento
¿Qué pasaría si volviera a repetirse este momento eternamente? Probablemente quisieran que este momento fuera importante, disfrutable, intenso, rico, perfecto.
Así nos enseñó a enfrentar todos los ensayos, llevando al extremo nuestras posibilidades, explorando siempre más allá de lo conocido, enriqueciendo nuestra expresión, excitando nuestros estados.
-Comencé a percibir que aprendía mucho más que teatro durante esta oficina.-
Wolfgang Pannek, una suerte de mixtura cultural entre el caos y el orden. Un alemán -más brasilero que los propios locales- nos insiste sobre aquel “eterno retorno”; nos recordaba de Nietzsche de una manera tan simple e instigadora al mismo tiempo, que no existen posibilidades de no continuar las reflexiones al ir para casa. Designamos un nombre para aquella situación: Fermentar.
Fermentar: Transmutación- transformación- maduración orgánica que prepara la regeneración y el pasaje de un estado de muerte a un estado de vida. Imagen del conocimiento efervescente que permite al espíritu ultrapasar sus límites habituales, con el fin de alcanzar –por la intuición o por el sueño- un conocimiento profundo de la naturaleza
.
“Os lugares em que a fermentação se produz naturalmente são lugares mágicos.”
Su magia es evidente.. nos hizo fermentar poco a poco.
Aquella pregunta, aquella hermosa pregunta acompañó y acompaña a todos los ensayos. ¿Qué harían si esto, aquí y ahora, fuera el eterno retorno?
Sinceramente creo que son formas de aprender que el arte no se delega; sólo se disfruta haciendo o comienza a desaparecer. Muy simple, no hubiéramos logrado el espectáculo que logramos sin estas cosas. –Aclarando que este relato es una pequeña porción de la torta taanteatral que aún estamos degustando.
Gracias Fermento!
Rito Individual e Rito Coletivo
Por José Eduardo Domingues
Durante o processo de realização dos ritos individuais do Nuttan 2010, período que abarcou aproximadamente dois meses de trabalho, cada participante propôs o seu próprio rito, sua própria transformação. Esses ritos individuais eram expostos com antecedência para o coletivo e no dia de sua realização combinávamos alguns detalhes, pontos fundamentais e íamos para o jogo sem ensaio prévio, o que trazia ao rito o frescor das descobertas e também nos colocava em um ponto de fricção entre vida cotidiana e jogo teatral, uma espécie de fronteira entre o real e o fictício. Por outro lado, não há ficção dentro do rito pelo fato das escolhas de cada pessoa, pela passagem de um estado a outro proposto por cada performer. Vale ressaltar que apesar de usarmos convenções teatrais dentro dos ritos, ao mesmo tempo, essa etapa transborda vida e escolhas predeterminadas e isso traz a sua realização (o rito) mais perto de nossa existência/vivência. Em seu livro “A Linguagem da Performance”, Renato Cohen aponta o “risco de vida” contido na performance, pois apesar de haver pontos predeterminados dentro do roteiro/grade, o espaço para o imprevisto é muito maior que na linguagem teatral, pois de antemão, não sabíamos exatamente como cada roteiro se daria na prática. Esse me parece o ponto chave na realização do RIT.U, nosso espetáculo de enceramento, na medida em que um roteiro foi fechado no intuito de criarmos um rito coletivo e a repetição (ensaios) desse mesmo roteiro. Como preservarmos o frescor da primeira vez e ainda mantermos espaços abertos para que o imprevisto possa fluir dentro de uma dramaturgia apontada? Curioso observar aqui outro fato que me chamou bastante a atenção: durante os ritos individuais a disponibilidade para o jogo estava fortemente presente; já durante os ensaios para o rito coletivo, essa disponibilidade embaralhou-se um pouco com o compromisso da repetição. Mantermos janelas abertas ao imprevisto contido na performance e ao mesmo tempo repetir/ensaiar o mesmo roteiro com precisão foi um dos nossos maiores desafios. A resposta para isso se deu durante os quatro dias de apresentações com o olhar cuidadoso da direção, que aos poucos, foi apontando pontos que poderiam e deveriam ser modificados a cada noite, com a introdução de textos produzidos pelos integrantes, com mais tempo para saborearmos cada momento do RIT.U. Claro que aqui não temos a menor intenção de darmos receitas definitivas, mas sim, apontarmos nossos entroncamentos dramatúrgicos e nossas escolhas para cada etapa do trabalho.
Momento de direção de Rit.U
Taanteatro, Nô e Candomblé
Por José Eduardo Domingues
Durante nossa conversa sobre rito de passagem foi possível fazer muitos paralelos com o Teatro Nô. A própria estrutura do rito dividida em três partes equivale ao movimento Jô – Hai – Kil contidos em todas as partes na dramaturgia Nô. Jô: situação inicial, primeira. Hai: elemento modificador. Kil: mudança de estado, transformação da situação inicial. Essa estrutura também permeia o rito de passagem do herói e dos xamãs. No caso do herói, o menino cresce (Jô), lança-se ao mundo (Hai), e transforma-se em outro (Kil). No caso dos xamãs o processo é um pouco diferente. Pessoas que passavam por uma situação limite entre vida e morte, como por, exemplo, picadas de cobra, doenças, estados comatosos e resistiam a tal processo; ao retornarem, eram tidas como especiais, curandeiros e mereciam assim, a mudança de estatuto dentro do coletivo. Vale ressaltar que ambos os casos – herói e xamã – o lugar e momento do rito eram decididos pelos deuses, podiam acontecer a qualquer momento, independente da vontade do candidato ou do coletivo. Trazendo um pouco para o lado do Nô que se divide em 5 temas, a saber: Nô feminino, guerreiro, loucura, de deuses e de demônios. Os shitês (protagonistas) estão sempre em momento limite, entre um mundo e outro, entre a loucura e a lucidez, na passagem entre vida e morte e são considerados entidades. O Nô é um teatro bastante ritualizado e que encaminha essas entidades, traz a redenção, a iluminação, a memória que faltava ao espírito naquele momento, para que ele possa seguir jornada. E para isso conta com a ajuda do uaki (monge orientador) e com a ajuda do coro que também tem a função de sonorizar a cena. Aqui a música existe apenas para valorizar o silêncio. O silêncio. O vazio. O nada. O Ma. Difícil explicar o Ma, conceito que na cultura/arte japonesa é quando o artista faz com que vejamos o invisível, ouçamos o não dito, quando criamos um instante de vazio grávido entre os corpos, uma espécie de tensão sutil e prenhe de muitos significados. Isso está contido na dança, no teatro, na arquitetura, artes-plásticas, na música etc. Do Ma desaguei na Erótica da Tensão, ou seja, permanecer na transição, potencializar a passagem, o momento, o instante. Penso que todos esses pontos têm paralelos com nosso coletivo/ritual/mitológico pessoal e são pontos de apoio que busco para criar conexões durante nosso percurso/processo/aventura criativa. Mas e o candomblé, o que tem a ver com isso? Assim como no Nô onde o shitê (protagonista) recebe em seu corpo a entidade de cada história e para isso alguns recursos teatrais são utilizados, tais como máscara, figurino, tambores, representação de um pinheiro no fundo do espaço cênico, a dança; também no Candomblé a entidade ao se presentificar utiliza-se de máscara (muscular e fixa), figurinos, tambores, dança e muitos outros elementos como luz, música etc. Todos esses elementos estavam presentes em nosso processo NuTaan 2010 e se fizeram concretos nos ritos individuais bem como no RIT.U. Mas, temos aqui, uma pequena diferença: se no Teatro Nô e no Candomblé as entidades são conhecidas para o ator/cavalo que a estuda com antecedência, nos ritos propostos por nós, onde cada performer propôs e protagonizou sua transformação, a entidade revelada aqui ainda é desconhecida. Ao mesmo tempo em que nos transformamos e/ou anexamos outros valores em nós, conscientes dessa escolha, nos deparamos também com o desconhecido em nós e que por outro lado sempre esteve lá, dentro de cada um guardado, escondido, sufocado, etc., mas sempre presente e nunca tocado. Esse me parece um ponto fundamental na aventura artística NuTaan 2010, pois ao mesmo tempo em que o processo proporciona a criação artística, o treinamento, a repetição e todos os elementos que compõem a construção cênica por outro lado faz, fez e fará com que cada performer possa lidar durante o labor artístico com o aterramento de sua própria entidade.
Processo e apresentação de Rit.U
Roger Valença
Após um decurso riquíssimo de produção de material durante os ensaios e a elaboração de Rit.U – mais de 30 horas de matéria-prima elaboradas durante 17 rituais - encontramos um grande desafio, afinal, como organizar tanto material em 1 hora de espetáculo sem perder a riqueza do processo?
A princípio, essa me parece uma tarefa bastante árdua, senão impossível. Mas com uma mudança de foco sobre a questão, podemos alterar a problemática da situação. Ao invés de elaborar um épico com horas de duração, encaixando todo o material produzido de alguma maneira que acabaria se tornando dispersa no contexto da criação do espetáculo (seja ela cronológica, temática, etc.), transportando para o palco as experiências já vividas e individuais de cada performer, preferimos recolher o material temático mais relevante, assim como as estruturas recorrentes entre todos os rituais realizados, organizados na estrutura de um pequeno rito coletivo.
É claro que “abandonar” o material é doloroso, mas tem uma importância significativa, a meu ver, para a maneira proposta de elaboração do espetáculo. Deste modo, recolhendo aspectos similares, temáticas e disposições semelhantes entre si, coletados na grande maioria dos rituais individuais, organizou-se uma nova estrutura de ritual coletiva, ou seja, não a favor de um protagonista, mas a favor da transformação de todos os integrantes do grupo ao mesmo tempo.
Ensaio geral de Rit.U - Roger
A partir deste novo ritual pudemos vislumbrar o espetáculo Rit.U. As próprias condições de tempo de ensaios fizeram com que durante a apresentação da temporada de Rit.U não houvesse um encerramento de processo de construção, elaborando um espetáculo pronto. O que ocorreu foi apenas uma nova etapa de experimentações contribuindo para que o espetáculo mantivesse as características principais de um ritual – o frescor, a energia, a entrega, a vivacidade, e a potência do acaso. Não se tratando de uma narrativa a respeito de 17 pessoas que passaram por transformações individuais, o espetáculo propunha uma nova transformação, que contava com a condução do público como parte integrante desse processo, além da atuação dos performers.
Isso foi possível graças à estrutura dramatúrgica escolhida. Por ocasião da contribuição individual de cada ator, ao final do espetáculo o público foi convidado a transitar entre os “jardins suspensos” de cada performer, ou seja, pequenas células que simbolizavam o universo pessoal e a conquista alcançada por cada um em cada ritual individual.
Assim, o público se transporta: tem seu espaço invadido no início do espetáculo, presencia passivamente o seu desenvolvimento e por fim transita entre os universos particulares de cada performer, assumindo um papel de integrante essencial do processo de “passagem”.
Penso que para o crescimento individual de cada performer não existam muitos exemplares de processos criativos tão intensos como o rito de passagem, que concentra uma potência viva em sua própria estrutura. Aproveitando as ocasiões adversas – pouco tempo e um grupo extremamente heterogêneo, por exemplo - pudemos despertar uma energia viva que se transmutou num resultado assustadoramente satisfatório, pois num espetáculo que ainda se modificava durante a temporada de apresentações, deparamo-nos com um desafio diante do qual só nos restou entregar o corpo ao risco de se fazer algo desconhecido.
RISCO
ensaio de Rit.U na Sala Paissandu
SOBRE AS ÁGUAS
deslizam fugas hieráticas
SOBRE AS OMOPLATAS DAS AVENIDAS
saltam as cabeças
úmidas de pólvora
como se açoitadas
almas de cães evadidos
turbilhão
irremediável perpétua sangria
MÃOS FOSFORESCENTES
NUM RITO DE RISCOS
E
RASGOS
lascivas ruidosas desarticuladas
e
lágrimas
descascando-se
no aquário de um monstro que se ajoelha
UM ARREMESSO AZUL NO PALADAR DA LOUCURA
DIÁRIO
Por José Eduardo Domingues
Largo lago de Memória
A Nau Nutaan volta no tempo e atraca no obelisco/falo. Tripulação desembarca pra um mergulho na fonte seca urbana molhada da lavagem. Lágrimas D’Oxun. Espaço passagem, paisagem concreta de ondas urbanas debaixo de uma grande copa de árvore. O rito vai começar. Zerar, coração, leão, no ritmo do mar, e o corpo começa a formigar, como se uma onda de pequenos choques percorresse meu corpo, e o espaço começa a dançar, levando os corpos atados pra lá e pra cá, como um imã entre aqui e o lá.
O lago transborda...
...e como é o mesmo rio, mas, não é o mesmo rio, a correnteza desce por onde soterrado mora Anhangá e a Nau zarpa na rota do chá preparado por mão de branca e preta velha lá do outro lado do rio, que vai lavar levar seus medos, e diluir pesadelos, navegar, nadar em águas límpidas e beber água da fonte.
E que a água lave nossas almas
E regue nossos corpos
E transforme tudo em flor
Em dança de xamãs
Em vagalumesca luz
Em centelhas luzidias
E a serpente engole o rabo
Elo feito, elo dançado
Elo fio vermelho traçado
Silêncio...
Murmúrio
Voz trancada
Ordeno-te
Acorda e bota a boca no trombone
balança o vestido
Grita até acordar e abrir o olho da menina morta
Que esperava pacientemente a Nau passar
E embarcar junto com ancestrais que brotavam do largo Bento
Com fome
Com frio
E (des)construindo universos
A serpente troca de pele
Na cara de Anhagá
Baú de acorde dissonante
Construtores curandeiros tocam com concreto
Música de lavar
Levar a praça concreto
O excesso
Consumir o corpo
Servi-lo num banquete a céu concreto aberto
Prato pão
Feito cão
Comê-lo-ão
Camaleão urbano
Via veias de luz vermelha
Nas entranhas
Sino surreal outro tempo
Outro corpo
E a Nau atraca no domingo monumental
Dando bandeira na praça bola olho central
Pedra Brecheret coberta de carne e barro
Barco empurrado pra dentro da mata
Atraca em tronco ventre e gesta outra cabeça
Cabelo deixado pra trás e banho tomado na boca do lago
Do outro lado homem enfaixado
De paletó
E peito pesado
Deixa na dança a placa âncora
Expectativa (re)passada
Corpo sopro
Sol da tarde
Debaixo da abóbada verde das copas
Catedral kata na mata
Sal na pele gelatinosa
Derrete o passado e dá luz um inteiro
Una
Embate entre a cidade e a delicadeza
Na rampa de acesso à praça sem árvore
O eu e o outro
Corpo pichado, violentado, trêmulo
B(r)usca força se pintando pra guerra
À guerra dos avessos foi um pulo
E do avesso quase esquina da Ipiranga
E São João
Para meu coração corpo sem eu
Corpo teu
Corpo fel
Corpo foda
Corpo pista
De dança
SansaraSexTour no trópico fel(iz)
Direto pra Luz
Bola branca de ano luz
Coreto ocupado e pedaços do outro no chão da
Luz
Sangue bacante de imensa luz
Grandes lábios dão à luz
Sou sã
Cedo seio
Anseia seres quem és?
Seres coro de luz vermelha
Último banho
Nau de luz no lago
Cabelo lavado
Espaço ocupado
Ritos, mitos, ditos, gritos, riscos
De luz
Tensões Afetivas – o pós-rito!
Por Simonne Xavier
Luta constante de tornar visível as pequenas prisões. Vermes que co-habitam as teias saudáveis do meu ser. Será que devo destruí-las? Talvez dançá-las, uma a uma, seja mais respeitoso para ambas as partes.
Pele, cheiro, tesão, sexo, libido, amor, atração, frenesi, encontro, objeto, ilusão, ausência, depressão, vazio, inversão, violência, invasão, descompasso, contaminação...
As vozes que me habitam, os seres que insistem em travar uma constante guerra interna. Hora de profusão de vozes. Hora de uma voz só. Quando elas se calam? Onde está o silêncio? O que é possível dizer para que o silêncio reine? Nele encontro essências, pequenos tesouros, encobertos por críticas, por palavras desmedidas. Guerra constante, todos os dias, as vozes apontam, dizem, julgam, anseiam por serem ouvidas. Constantemente ouço, permito ser contaminada pelo excesso de indicações que me levam a crer que sou incapaz, indigna, puro fracasso... Dos piores, daqueles que o são por se quer terem começado. Cada vez que aceito essa voz tudo perde a cor, o sentido, o sabor. Ela também é incapaz, indigna, puro fracasso... Esquece que há memória aqui dentro, que algo pulsa ardentemente em busca do brilho, da cor, do sentido e do sabor. E a guerra continua... Calo uma a uma, amarro a mandíbula maldita que insiste em mudar o rumo há tanto tempo traçado. Eis que encontro um sentido no meio da balburdia... O que seria do som sem os interstícios do silêncio? Hora de assumir a força de oposição.Às vezes tudo parece ensurdecedor, inclusive o silêncio. Puro movimento, vai e vem constante, ininterrupto como as ondas do mar. Não há ponto de partida, não há porto de chegada. Tudo é. Está aí. Não aceitar o maravilhoso fluxo da vida, é impedir que ela desenvolva a sua dança primordial – criação pura e constante – não é possível existir sem as forças de oposição.
Arranco com um grito o silêncio que tanto quero e preciso. Hoje eu sei onde ele está, posso acessá-lo a todo momento, confio em todos os caminhos que ele me indica. Ainda é tempo de reconhecer esse novo ser que me habita – o silêncio. Mas a experiência inicial já traz a segurança necessária no novo caminho que estou trilhando. Agora, como diz Wisnik... Se meu mundo cair, eu que aprenda a levitar...
Os olhos profundos e brilhantes, o sorriso escancarado, a luz que tudo ilumina. O impossível só existe dentro de mim, dentro de uma alma machucada, um ser cicatriz, ser além dor... Tudo para compreender que a dualidade caminha paralelamente. Não há como viver e não sofrer ao mesmo tempo, o sofrimento está para a felicidade, como o escuro para a luz – um não existe sem o outro. Por que negá-lo? Que venha todo o sofrimento, se este é o preço que se paga por instantes de felicidade – instantes que se eternizam no tempo e no espaço, me transforma em universo e dá sentido a minha existência. Momentos tão desejados, um querer profundo e sincero que se transforma em realidade vivente, precioso como o sol, necessário e vital.
Aprendi a aceitar o inesperado, a brincar com o desconhecido, a acreditar que todos os passos me levam onde quero ir, que aquilo que vejo nem sempre é o que sinto, que acreditar na vida é crer que todos os acontecimentos são parte integrante do meu ser, aprendi a contemplar o céu que está bem acima de mim, que todos os dias me abençoa, que todos os dias mostra a sua magnitude e o seu poder de transformação. Através dele aprendi a contemplar o céu que habita o meu ser. Aprendi que o maior tesouro que existe nesse mundo é aquele que está dentro de mim.
Coreografia do Desconhecido
Por Alda Maria Abreu
Alda Maria Abreu na "Caminhada das Aberrações"
Acredito que hoje eu aprendi a maior lição da minha pequenina vida de atriz: “Aquilo que me desaloja é o mais hospitaleiro”. Parafraseio aqui o escritor Juliano Pessanha, que numa passagem de seu livro Ignorância do Sempre, faz um elogio à potência daquilo que nos furta de nós mesmos sem aviso nem licença.
Digo isso pois acabo que chegar em casa, após mais um dia de trabalho com o Nutaan e estou com uma sensação muito intensa de ter dado um nó nas minhas tripas, de ter recebido marteladas em minhas costas e (o mais extraordinário) estou com câimbra no couro cabeludo. Essa sensação prazerosa de cansaço depois de um intenso trabalho criativo eu já havia experimentado, no entanto o ineditismo que me impulsionou a escrever sobre nossa experiência de hoje reside justamente na idéia de Pessanha de que o desalojar é habitar a potência.
Por que digo isso? O que foi possível desalojar no trabalho de hoje? De que potência estou falando?
Logo após a sequência de ESFORÇO, Wolfgang propôs que todos se colocassem num lugar no espaço para que realizássemos o MARÍTMO ao som de algumas músicas, tendo como tema central: corporar a urbanidade.
Assim todos iniciamos. Após algum tempo, Wolfgang solicitou que parássemos, porque ele e Valter iríam dar mais algumas indicações individualmente. Sendo assim Wolfgang foi até mim e disse: “Alda, eu quero que agora você oxigene seu tronco, peito, barriga, coluna e sexo, fazendo com que seus movimentos ganhem em expansão, nos planos aéreos, sempre oxigenando essa região do tronco, serpenteando a coluna e explorando alongamento de pernas e braços, inclusive com saltos”.
Todos receberam suas respectivas indicações e retomamos o MARÍTMO.
É válido ressaltar que tudo que Wolfgang me disse era contrário ao que eu estava fazendo anteriormente.
Durante o exercício eu esforçava-me para dar conta da solicitação que me havia sido dada, mas por diversas vezes meu corpo, quase que involuntariamente, de forma até mecânica, voltava ao padrão de movimento anterior. E dessa forma fui tendo que abrir espaços, como que esculpindo em mim mesma um novo corpo para conseguir expandir, serpentear, oxigenar e saltar.
Travei uma verdadeira luta contra o meu corpo de movimentos viciados, desalojando-me de meus padrões por alguns segundos, e assim conseguindo vislumbrar pequenas fagulhas de expansão.
Quando acabamos o MARÍTMO eu estava num estado de exaustão. Com o corpo ainda quente consegui me deslocar até a estação de metrô com certa velocidade, mas ao sentar no trem e no caminho para casa, me arrastava sentindo micro-músculos que jamais havia sentido.
Foi aí que conclui que a constante repetição dos mesmos padrões de movimentos coloca meu corpo numa condição de trabalho confortável, pois mesmo fazendo-os com vigor e energia, torna-se cômodo, conhecido, viciado, e agora diria até preguiçoso, já que a memória muscular do meu corpo já tem estes movimentos decodificados e por isso torna-se uma via de mão dupla: recorro sempre ao mesmo padrão de movimentos porque minha memória muscular sempre evoca-os prioritariamente? Ou não amplio o repertório de minha memória muscular pois sempre recorro aos padrões de movimentos conhecidos? Esse jogo vicioso e despotencializador faz com que meu corpo esteja no lugar do conhecido e do confortável, não ultrapassando os limites necessários para de fato enriquecer o trabalho criativo.
O cansaço físico da musculatura das minhas costas, do baixo ventre e até do meu couro cabeludo; a sensibilização de partes completamente desconhecidas me fez atentar para essas questões, pois algo de novo aconteceu hoje, por isso repito o que disse no início dessa reflexão: “Aquilo que me desaloja é o mais hospitaleiro” ou melhor, PRECISO INVESTIR NESSA ENERGIA SEXUAL DE EXPANSÃO, QUE FURTA-ME DOS PADRÕES E DOS LIMITES MORAIS ESTABELECIDOS, POTENCIALIZANDO UMA OUTRA NATUREZA DE MOVIMENTO, NATUREZA ESTA QUE HABITA O PORVIR E QUE É O PRÓPRIO DEVIR!
Listei abaixo os nomes que dei aos pequenos momentos onde acredito, no trabalho de hoje, ter roçado a ponta dos dedos nesta outra natureza:
1. Olhos da velocidade
2. Olhos eróticos
3. Serpentear da coluna, com peso no metatarso e virilha aberta
4. Saltos sobre a parede
5. “Cambré” gangorra de pé e sentado
6. “Fouettés” enlouquecidos
Hoje estabeleci uma meta para meu fortalecimento muscular. Agora compartilho com todos mais uma meta: alcançar esta outra natureza de movimento, investindo na energia sexual de expansão.
TENHO VIVIDO VITALIDADE
Por Tatiana Schunck
Tatiana em "Expulsa", rito de Thiago
Não porque somos pessoas bonitas, legais, bacanas; que nos gostamos, nos adoramos... Que os ritos teem sido vitais. Enfim, há um encontro. Tem acontecido um encontro. E eu que falei de encontros no rito de transformação que vivi. Vital não sabia realmente o quanto. O quanto estou preenchida de vital.
Desde a torre, a antecedência, o xamã, o grito, a menina morta, a serpente-árvore, o cabelo, o engolido, a costura, a crescido, a aberrante, o cu, a entrega, o metrô, a praça transeunte, o banho, o cala boca, o parto, a mãe, a orixá, o sangue, sol.
Começamos em torre e fechamos em sol.
Queria poder inventar palavras. De novo me sinto querendo dizer que não somos nós os responsáveis por tudo, somos as pessoas querentes disponíveis, um tanto dispostas ao cu do mundo. Ao sol do mundo. Mudei. Mudei desde lá. Venho mudando desde o primeiro suco em grupo. Mudei mesmo no mergulho aberrantes. Fui. Fui mesmo. E voltei.
Cumpri esta jornada, me estranhei, me preocupei, me continuei, me obriguei, me convenci, me fiz. Ahhhhhhhhhh... Não tem palavra para descrever isto que sou nesse instante agora no tempo. Não existe espaço, é o não lugar este que encontrei. É fundo, escuro e é sol. Cega. Por isso tem que voltar, para ver, se ver, se reconhecer e dividir.
Senti tanto, coisas dadas pelo nós estranho, na maioria somos estranhos. Ouvi de uma amiga que queria fazer teatro com pessoas que se reconhecessem de alma, como amigos importantes; nesse instante de escuta eu quis dizê-la: estou vivendo tocando tudo-todo com tão só somente estranhos... Gozo de vida.
Quem eu encontrei ali? Na boca no muro? Mordi o concreto, nunca pensei, nunca imaginei. Não porque sou pudica, arcaica, mas porque essa vida ainda não me era permitida. Era ideal eu ser assim. Era ideal eu ser assim, de outro jeito quando queria, e de outro, e de outro... E não era ninguém. O rito Aberrando completou o processo, nesta etapa, da minha alegria de ser de mim. Me conheço agora. E não é que não conhecia antes, mas agora tem a coragem. Conheci a coragem que existe aqui.
Cresci. Nunca cresci tão rápido de tamanho e de intensidade expostas. Confiei em nós e assim cresci de mim. Agora confio em mim. Faltava ver, viver. Vivi meus sonhos – isso não dá para explicar. Só no cinema.
Se fosse só uma palavra:
Estou.
27.06.10
Vou fazer 31 anos, que emoção.
Reflexão sobre o Rito “Aberrando”, de Tatiana Schunck
Por Alda Maria Abreu
No seu rito, a Tati pediu para que eu fosse uma aberração, juntamente com a Bia, a Lilian, a Maíra e a Carol, assim como pediu para as outras meninas, exceto a Cléia, serem “perfeições do mundo Doriana”.
Para mim, ironicamente as “perfeições do mundo Doriana” são perfeitas aberrações e por isso ao escolher como seria minha aberração criei uma persona que vivia o mundo Doriana e por isso aberrou-se.
Peruca loira, laçarote preto no vestido vermelho cheirando a mofo e uma corda no pescoço em vias de enforcá-la.
O motivo que me impulsionou a escrever sobre o rito “Aberrando” foi porque durante a Mandala de Energia escolhi fazer também a parte do Coração.
Potencializei energia com minhas mãos e coloquei-a sobre meu coração. Arranquei-o para fora e enquanto acariciava-o, comecei a comê-lo, primeiro pequenos pedaços e depois devorando-o faminta, engoli meu coração e já não tinha mais o que devolver ao buraco que havia em meu peito. Assim, caminhei em direção ao rito, com um buraco no lugar do meu coração e com uma massa de sentimentos amorfos dentro do meu estômago.
Durante todo o rito esse era meu constante impulso: sou uma aberração que comeu seus sentimentos e agora os está digerindo, transformando-os em bolo fecal.
E assim, deu-se uma experiência inédita, passar cerca de uma hora habitando esta aberração que come o que sente e transforma isso em fezes, levando sempre em consideração o que a Tati fez questão de ressaltar minutos antes do rito: “a aberração, o monstro, é o guardião do tesouro; ao encontrarmo-nos com ele encontraremos o que há de mais precioso”.
Deixar os sentimentos e as sensações percorrerem o meu corpo todo num processo de transformação e não mantê-los intocáveis e seguros em meu coração, talvez seja o tesouro precioso que encontrei.
Obrigada Tati.
VIVER A MORTE NA LAMA
Por Alda Maria Abreu
Meu Rito estava marcado para o dia 20/06, um domingo, no Parque do Ibirapuera. Para escolher este lugar fui até o parque duas vezes com o intuito de conhecer o local e escolher qual o cantinho especial daquele imenso oásis, no meio da urbanidade caótica de São Paulo, seria mais apropriado para realizar meu Rito de Passagem.
Na véspera do dia 20 o local já estava devidamente escolhido e todos já sabiam qual seria, no entanto eu ainda precisava conferir mais uma vez os últimos detalhes, então, às 14h do dia 19 estava eu lá no parque, (re)conhecendo mais uma vez o cenário onde iria realizar minha Passagem tão esperada. Aproveitei a oportunidade e fui até a Administração do parque pedir uma autorização para a realização dos três Ritos programados para o dia seguinte e felizmente tudo correu bem e voltei para casa mais segura quanto ao local da realização e quanto à questão burocrática da autorização.
Porém, foram seguranças ilusórias, pois o que de fato me deixava ansiosa não eram as burocracias ou estratégias que envolviam a feitura do meu Rito, e sim a Passagem que eu pretendia realizar e o que eu encontraria lá, do outro lado de mim.
Não dormi.
Tenho muita dificuldade em acordar com despertador, então como queria chegar bem cedinho no parque, e para isso precisava sair de casa às 6h45, pedi para minha mãe, lá de Salvador-Bahia, me ligar às 6h da manhã para não correr o risco de perder a hora.
Eram 5h57 e eu não havia pregado o olho.
Durante a madrugada revisei mais de dez vezes o material que teria que levar para o meu e para os dois Ritos seguintes, na ilusão de que isso aplacaria minha ansiedade. Mas, assim como a ida à tarde ao parque não surtiu efeito, essa obsessiva revisão do material somente me fazia ficar mais desperta e ansiosa.
Finalmente eram 6h da manhã.
Toca o meu celular, atendo, agradeço a minha mãe, desligo o telefone e digo para mim mesma: “Toma um banho da cabeça aos pés, porque hoje é um dia muito especial!”.
E foi o que eu fiz. Banho. Água. Sabão. Toalha. Frio. Roupa. Mochila. Café. Cigarro. Mais café. Outro cigarro. Baldes. Chave. Porta. Metrô. Ônibus.
O motorista disse: “Avisa à menina que vai saltar no parque para descer aqui que a rua tá interditada.”
Saltei do ônibus com aquela cara de “como assim?”, o lugar tão cuidadosamente escolhido por mim, verificado e autorizado está interditado?
Foi incrível. Eram 7h30 e um mar de gente correndo pelas ruas em torno do Parque do Ibirapuera. Caminhei no contra-fluxo dos corredores até a entrada do Portão 9A, só para conferir (mais uma vez, ilusão) se ele estava aberto mesmo, pois ele seria o “Portal” que nos lançaria do caos urbano até o mundo pantanoso, onde reside a árvore morta e seus guardiões. Tudo ok: Portão liberado. Caminho até a árvore escolhida. Pier. Banheiro. Argila. Água. Mais argila e mais água. Baldes cheios de lama. Meu corpo em constante frêmito. Mais um cigarro.
Sigo em direção ao ponto de encontro combinado com todos: Monumento às Bandeiras. No caminho encontro a Isa e a Simone, tento disfarçar meu nervosismo e meu corpo que treme falando com elas de coisas práticas como “encher balde de água”, “horário”, “onde fica o banheiro”. Mas, por dentro, meu sangue gritava, ecoando um tremor que começava lá na espinha.
8h30.
8h40.
8h50.
Todos chegavam, arrumavam seu material e revisávamos os últimos detalhes.
9h15. Saímos do Monumento e entramos no parque para em volta da árvore relembrar os últimos detalhes e assim, darmos início.
9h30. Ainda estávamos lá perto da árvore, mas era hora de começar, já estávamos atrasados.
Deixamos para trás os Guardiões da Árvore Morta e em silêncio partimos para o ponto inicial do Rito: o Monumento às Bandeiras.
Todos em círculo, respiramos fundo e “zeramos”. Conectados aos que ficaram lá junto à árvore morta, iniciamos as três sequências da Mandala de Energia: Dormir e Acordar, Poder da Serpente e três Estados da Matéria.
Até aqui, pude ser narrativa, explicativa e até descritiva. A partir deste ponto não poderei mais ser. A experiência do Rito de Passagem, para mim, não poderá ser descrita. Tentarei elaborar aqui uma escrita que dê conta de imprimir sensações análogas às que tive durante meu rito. Ao dizer “imprimir sensações” refiro-me a imprimir no sentido de inscrever, afetar, sensibilzar, deformar e transformar o corpo, ou seja, refiro-me à Passagem em si.
Primeiro, quero ressaltar a conquista primordial ocorrida durante meu rito: minha mente não estava mais desconectada do meu corpo, como se dá cotidianamente, não haviam aquelas vozes mentais policiando meu fazer. Após a Mandala de Energia todo o meu ser: mente, corpo e alma estavam integrados. E assim mantiveram-se durante todo o Rito, sem censura mental ou fadiga corporal. Parece meio pretencioso, mas acredio ter habitado um estado de Vida completamente desconhecido e que certamente residia em potência dentro de mim.
Não era eu, era outra. Eu-indivíduo-sujeito-egóico desapareceu e deu lugar a uma multiplicidade de outros seres que já me habitavam em potência, mas não tinham espaço para vir à tona. A experiência do Rito abriu esse portal com outros mundos onde habitam muitas Aldas, desconhecidas e ansiosas por existir.
Aldas inorgânicas, informes e desejosas por viver aquilo que não se curva à representação. Esse terreno baldio da minha própria vida que foi inaugurado durante a feitura do meu rito, permitiu que emegissem esses outros habitantes de mim mesma; habitantes sem sexo, raça ou ideologias, habitantes inorgânicas, outras formas de Vida.
Deixei-me seduzir e delirar por elas e desintoxiquei-me de mim mesma.
Todos os que estavam presentes neste Rito de Passagem utilizaram um estado de Dança para chegar num estado de Vida. E o que era arte e o que era vida separadamente, fundiu-se.
Ser concreto no concreto, ser lama na lama e ser água na água. Uma outra economia da existência, uma outra política de ser.
Sem dúvida ficarão marcas, impressões inscritas no meu corpo e na memória dos corpos que viveram este Rito de Passagem, porém, escolhi arrancar os cabelos e permanecer assim, marcada para além da experiência do rito, acredito que “minha careca” além de me des-identificar e des-aldificar poderá conservar o grau, o estado e a qualidade das sensações da experiência do rito para além dela, provando-me diariamente que sou muitas e não uma.
Não haviam espelhos nos banheiros do parque, então, ao fim do rito, permaneci no parque durante os outros dois ritos do dia e enquanto eu caminhava pelo parque, naquele dia ensolarado, via no chão uma sombra que não era a minha, ou melhor, não era daquela única Alda que sempre conheci. Poder ter uma sombra outra, uma sombra que não me representava, mas sim, que era a extensão de um eu-sensível que acabara de nascer foi a materialização da Passagem que acabava de ser realizada.
Agradeço imensamente a todos que dedicaram-se em prol da feitura deste Rito, inclusive os que naquele dia não puderam estar presentes, tenho certeza que TODO o grupo do Nutaan 2010 foi co-responsável pela minha Passagem! Mais uma vez obrigada a todos!
Pequenas reflexões/questões de um performer em processo
Habitação-Hábito-Habitar-Habitat-Habitato
Por Vlamir Sibylla
Quando habito meu corpo? Quando sou por ele habitado? Quando permito que o Habitem por mim?
Curioso. Mas às vezes não enxergamos de fato o que está à nossa frente. Olhamos e não vemos. Nosso nariz está na nossa cara e só o vemos quando olhamos para o espelho ou quando ficamos vesgos. Quando me entrego de fato à experiência do momento presente e quando fico mentalmente pensando: ué, não foi isso que eu imaginei que iria acontecer!! E agora? O que eu faço? Ei,vocês!! Não vão fazer o que a gente combinou?
Nossa mente/musculatura interna sabe ser tirana quando nos dirige, poda, censura, comenta, cobra e o que mais, criando hábitos que nos desabitam. Dirigi meu próprio rito, na medida em que dei espaço para esses pensamentos? Qual a tensão/relação entre isso e o que está acontecendo aqui e agora? Pelo que os outros corpos/integrantes/ambientes/musculaturas externas estão propondo? Estou dirigindo minha vida? Para que lado? Sendo por ela dirigido? Estou nadando no fluxo ou indo contra a maré? Qual fluxo? Qual maré? Quem habita meu próprio corpo? Minha mente? Meu próprio corpo? Ela também é meu corpo e aí está uma tensão, uma relação? O que está para além dessa caixinha mental aprisionadora? Das caixas que nos aprisionam, dos encaixotamentos. O que há para além de nossos papéis, papelões, mundinhos, habitações? O que há para além de nossos olhos, do corpo fantoche que descasca? O que há para além de nosso isolamento cotidiano de cada dia?
Rito de Vlamir Sibylla
Androginia não é viadagem! Em que medida estou sendo um tirânico diretor de cena por medo de entrar em contato com meu monstro, com meu sagrado, com o que tenho de melhor em mim por medo de julgá-lo uma aberração? Em algum momento da vida achei que minha potência como ser humano, como dançarino era uma aberração?
Corpocidade, cidadecorpo. Do alto de um muro, vejo carrossangue circulando pelas vias – veias que tecem e atravessam meu corpo em fios. Quantos corpos vivem dentro da mesma cidade? Quantos corpos vivem dentro do mesmo corpo? Quantas cidades vivem/cohabitam dentro da mesma cidade? Quantas cidades vivem dentro do mesmo corpo? Quando estamos enterrados vivos dentro de nossos próprios corpos? Quando estamos enclausurados/encaixotados em nossos corposcidadescorpos?
Pela cidade, vejo a natureza rasgando o concreto em braços/árvores irrompendo em busca do céu. Pelo meu corpo, sinto os pés aterrando, buscando raízes que atravessem a terra...
Enterrando, Aterrando
ENTERRATERRAR
Em terra aterrar, pela pele que descasca
Enterrando um corpo que cai por terra
CORTA!!
Criando um novo corpo, nasce uma Sibylla
Marítimo
Por Carol Greco
Carol Grecco no marítimo: mergulho nos ritos de passagem
No nosso encontro de quarta feira, conforme solicitado, fizemos o Mandala de Energia Corporal. Neste momento, tivemos a oportunidade de relembrar algumas partes e entrar no marítimo tendo como inspiração os Ritos de Passagem que já aconteceram e os que estão por vir. Quando este tema foi proposto, minha mente/corpo reagiu de maneira a tomar um choque elétrico, pois os rituais vêm me afetando de forma tão intensa que sinto que este alimento ainda está sendo digerido. Desprendendo-me do raciocínio lógico, deixando o ar percorrer meu corpo e os movimentos do mandala aparecerem, busquei uma grande concentração. Ao chegar ao marítimo parecia que meu corpo já guardava a resposta para o tema sugerido, as reações físicas e mentais que apareceram neste instante foram bem significativas para mim. Meu corpo em estado de pedra partia em busca de algo, queria caminhar para alguma direção, mas havia muita oposição: desejo que impulsionava meu corpo ao risco e movimento; e algo que impedia essa movimentação, DESASSOSSEGO, palavra que de maneira inesperada veio à minha mente e me fez conectar com todos os Ritos de Passagem do Nutaan. Como não tínhamos muito tempo para este exercício, logo encerramos e a vontade de permanecer foi grande.
Sobre o rito de passagem Mastica de Rodolfo Osses
Por Chiu Yi Chih
No rito de Rodolfo podemos observar dois movimentos coordenados. O primeiro se inicia de modo cotidiano e coloquial: conversamos sobre a alimentação, os preços dos alimentos fixados no folheto da propaganda, comemos e socializamos a nossa refeição. Tudo se passa como se os seres humanos, desde o ato de mastigar até a digestão, pudessem se comunicar numa linguagem convencionalmente instituída. Há no meio desse rito social ruídos e balbucios que destoam do compasso das normas, mas, no fundo, é como se todos pudessem ser através do ato de comer. Esse ato diário e banal que atravessa todos os momentos de nossa vida.
No entanto, algo de insólito acontece. Os consumidores – a partir de sua carência e escassez – percebem que o significante social simbolizado pela comida se torna um objeto saturado, excessivo. De uma certa forma, o ato de comer ritualizado de maneira irônica e excessiva satura o corpo, o cérebro e o intestino. Os corpos se entulham de mixórdias grotescas, ainda que essas últimas sejam necessárias para a manutenção da vida. Paradoxo: é preciso comer para ser e ser para comer. Mas quanto mais se come mais se sente fome. Assim, ressentimos de uma FALTA que cada vez mais nos mergulha numa condição de insaciabilidade.
Um curto-circuito que, do ponto de vista psicológico-social, significa: só tenho existência com a condição de ingerir esse produto fabricado. Eu sou o que como e mastigo tanto como eu sou o produto da linguagem e do discurso socialmente estabelecido. Se nos nossos atos linguísticos, toda a enunciação é social (Bakhtin), e no inconsciente somos estruturados pela linguagem (Lacan), todas as nossas escolhas estão fadadas a uma estrutura previamente determinada. Isso quer dizer que somos agrilhoados pelas amarras da linguagem.
Ora, romper esse arcabouço se torna quase impossível. O ser é determinado por uma cadeia de significantes (identidades sociais) e de identificações imaginárias com o Outro. Por outro lado, essa mesma angústia cravada no comportamento escapa de todo determinismo. É aqui que a lógica do consumo se autocorrói. Pier Paolo Pasolini mostrou com o filme Saló que os próprios burgueses não escaparam dessa carnificina, cujos ingredientes eram as suas próprias carnes agrilhoadas pelo desejo mais sádico. Basta lembrarmos dos nossos impulsos mais recalcados, de nossa agressividade latente, de tudo aquilo que não pode transpor as barreiras da censura do nível consciente. O nosso ego constituído por essa estrutura de censura impede a passagem dos instintos inúteis de nossa libido (Freud). A libido sexual é inútil para o desenvolvimento da civilização e requer o recalque ou a sublimação. Contudo, tanto no O Olho da Menina Morta como no rito Mastica, podemos observar uma “transgressão” no sentido daquilo que Octavio Paz diz a respeito dos poetas românticos, simbolistas e surrealistas. Todos têm em comum a busca da transgressão pelo corpo. Impregnados de uma carga semântica de correspondências, notamos que o corpo de Rodolfo sofre um ato de devoração. Tal ação, se não quisermos cair no mero signo do canibalismo, repercute na camada mais profunda de nossas consciências. Assim como no O Olho da Menina Morta em que procurei uma certa aproximação com um estado de ser-morto – não buscava representar a morte – e com um estado de ressurreição do corpo e de suas células germinativas, no rito de Rodolfo pude sentir que o corpo, essa massa de átomos, proteínas, carboidratos, etc., foi o trampolim para um ato de transgressão. Esse momento em que o corpo devorado se extravia e se desenha em fendas, fibras, infinitas formas e pedaços se constitui como o ápice de uma afirmação incondicional diante da própria VIDA. O corpo devorado dança a sua própria devoração num gesto de transcender a escassez e a falta. Por meio de seus flagelos e da contemplação nos muros da cidade, os corpos que o devoraram partilham da mesma devoração.
Rito Mastica de Rodolfo Osses
Por Thiago Henrique
Thiago Henrique e Roger no rito "Salto Sobre a Sombra"
Dia de corpos marcados.
Transformação.
Metamorfose.
Do belo para o mais belo, bizarro.
Tatuar.
Marcar na pele o que São Paulo impressa.
Tornar-me guerreiro para enfrentar essa guerra cotidiana, não escolhida por mim.
É preciso gritar.
Oito.
Meu corpo não o suporta. Uma força inalcançável.
Sou nocauteado pelo infinito.
Transformação.
Metamorfose.
Quantas vezes somos travestidos de moral?
Porque quanto tempo mais me travestirei para ser o que o outro quer?
Hoje estive do outro lado.
Desconhecido.
O vazio estava neles ou em mim?
Sentia tristeza, me sentia em casa.
Os queria abraçar.
Elas precisam zerar.
É preciso muito poder da serpente para estar ali e dançar.
Elas não o possuem.
Pouca luz.
Acordei mais forte.
Meu corpo hoje é outro.
Trouxe pra mim um pouco daqueles corpos machucados.
Metamorfose.
Do belo para o mais belo, bizarro.
Tatuar.
Marcar na pele o que São Paulo impressa.
Tornar-me guerreiro para enfrentar essa guerra cotidiana, não escolhida por mim.
É preciso gritar.
Oito.
Meu corpo não o suporta. Uma força inalcançável.
Sou nocauteado pelo infinito.
Transformação.
Metamorfose.
Quantas vezes somos travestidos de moral?
Porque quanto tempo mais me travestirei para ser o que o outro quer?
Hoje estive do outro lado.
Desconhecido.
O vazio estava neles ou em mim?
Sentia tristeza, me sentia em casa.
Os queria abraçar.
Elas precisam zerar.
É preciso muito poder da serpente para estar ali e dançar.
Elas não o possuem.
Pouca luz.
Acordei mais forte.
Meu corpo hoje é outro.
Trouxe pra mim um pouco daqueles corpos machucados.
“SERPENTE – DO CONCRETO AO RE-PERMEÁVEL”
Por Carol Greco
No meu ritual, antes mesmo de seu início, já havia uma atmosfera de tensão: dia do primeiro jogo do Brasil; o local que escolhi ficava na região central e perto de um evento criado para a Copa de 2010, houve uma discussão entre transeuntes e policiais, pessoas embriagadas perambulavam, pessoas sem teto se faziam presentes em sua “casa”. Depois de muito procurar e pensar, eu defini este espaço para a realização de minha transformação: quis trocar de pele, a qual me colocava num estado concreto e de conforto. Minha opção por aquele lugar desarmônico, não tão belo, não higiênico e habitado pelo desconhecido, fez com que esse momento ritualístico se potencializasse ainda mais para mim. A Tensão existente no ambiente urbano tornou-se importante para romper a pele que já estava cristalizada e precisava ser renovada.
... “Entre, Tensão e acontecimento compartilham essa duplicidade: surgem do encontro entre corpos, mas no instante seguinte transformam-se em pólos de novos acontecimentos. São entre e entes ao mesmo tempo. O mesmo ocorre com os corpos. Acostumamo-nos a percebê-los como blocos, e no entanto são processos. Entre e ente se atravessam com duas perspectivas do mesmo objeto” ... (pág. 56 Livro Taanteatro)
Com os integrantes do Nutaan, entramos juntos no universo proposto para meu ritual, foi super importante a confiança e apoio de todos. Passados alguns minutos percebi que o lugar se transformou, foi resignificado e tornou-se permeável, assim como eu/Serpente que abandonou sua pele e está pronta para receber o que há pela frente.
A nova pele recebeu um banho de água aquecida pela energia dos participantes e pelas músicas criadas pelos integrantes do Nutaan e pessoas que apareceram e pertenceram ao ritual. A água parecia vir do céu, cada gota era felicidade, estava purificada. Senti-me criança livre de amarras, pronta para brincar a vida, o essencial.
No retorno à terra fui presenteada com o toque das mãos dos performers e com o som de palavras que se confundiam com o bater das mãos, formando uma frase cheia de vivacidade e emoção: “Frio, fome e sede. Já passei por isso aqui”. (Transeunte – Performer anônimo).
Ser ritualizada me trouxe calma e abriu o olhar ao acontecimento. Permitiu-me estar mais na e com a cidade.
A imensidão de concreto dessa grande cidade chamada São Paulo, encobre a Natureza que aqui está. Durante o rito pude perceber o quanto é fortalecedor, a terra (mesmo que um pequeno canteiro), o céu, a árvore... E que é possível penetrar e estar conectado. Agora posso fazer do concreto, a lama, que é penetrada e movimenta.
Reflexão sobre o texto Felicidade
Por Cleia PlácidoCleia Plácido em Aberrando, rito de Tatiana Schunck
Muito interessante!
Tem tudo a ver com as nossas vivências nos
rituais e me faz refletir até que ponto a questão "civilidade" nos
impede de ir até o limite de nossos desejos nesses rituais.
Acredito que exista uma repressão silenciosa, tanto do canditado em relação àrituais e me faz refletir até que ponto a questão "civilidade" nos
impede de ir até o limite de nossos desejos nesses rituais.
sua proposta, quanto do ritual em relação à cidade. No civilizado
Parque Ibirapuera, esta repressão silenciosa ficou bem aparente: a
atitude dos frequentadores do parque em reclamar na administração, ao
invés de perguntar diretamente a nós sobre a atividade. Incomodamos a
civilizada felicidade dos frequentadores com a nossa animalesca
felicidade.
Reflexão sobre o texto "Felicidade"
Por Chiu
Oi Valter, maravilhoso o texto. É bem proveitosa a reflexão que se coloca: é possível uma conciliação entre a conquista da civilização feita às custas da sublimação dos nossos instintos mais primários e o nosso campo de pulsões vitais? Eros e civilização de Marcuse aponta que essa repressão da civilização operada sobre nossos instintos provocou a nossa impotência. Mesmo a cultura e o entretenimento onde deveriam permitir uma manifestação de nossos instintos mais lúdicos acabou se tornando um meio de alienação/repressão e um modo de domesticação de nossa existência. Marcuse aí concorda com Nietzsche de que o ser humano, através de sua moral "fabricada" e historicamente construída pelos conceitos de bondade e compaixão, foi se atrofiando enquanto ser animal e perdendo, portanto, as suas raízes biológicas e ancestrais. Por isso, para Nietzsche o ser humano é doente. A cura seria ele se libertar dessas "instâncias morais" que o aprisionam dentro de crenças como a de que o ser humano é piedoso, compassivo, bom, etc. Falsa moralidade que obstrui o fluxo de nossa verdadeira potência. Só que a própria civilização é um contrato necessário para o convívio social e para a construção de individualidades, e até sem ela não haveria processo nenhum de subjetivação, o que acarretaria, nesse caso, um grande contingente de indivíduos com impulsos infantis e pouco suscetíveis de se desenvolverem. Em contrapartida, mesmo na nossa sociedade observamos muitos indivíduos com problemas de subjetivação, onde por causa da ausência de determinados ritos de passagem, eles acabam de modo regressivo voltando para as suas cascas protetoras. E nisso ocorre justamente o problema nosso contemporâneo: os nossos ritos sociais perderam a sua característica sagrada, e com isso, restam-nos uma multidão de caminhos protocolares, que aparentam o caminho da mudança quando na realidade apenas dissimulam um estado de infantilidade do ego mal amadurecido. Falta-nos os ritos de passagem que nos levem a um verdadeiro amadurecimento como ser humano biológico. Mas acho que esse problema sempre nos acompanhará e alguns homens tentarão trilhar o processo de individuação seguindo os seus instintos e outros represando-os, mas creio que nem um caminho e outro leva ao verdadeiro conhecimento e encontro de si mesmo. Enquanto tínhamos há um tempo atrás respostas fornecidas por grupos intelectuais e comitês e correntes de pensamento, hoje vemos que cada um deve por si encontrar a resposta, e nessa época onde se dá a plena liberdade ao indivíduo (Gilles Lipovetsky) mais somos levados também a um poço cheio de lama e de água onde nossos pés mal se erguem para caminhar, mas é justamente talvez nesse terreno movediço - nunca vivido por nossos antepassados - que o homem possa conhecer o seu verdadeiro abismo.
Abraços.
REFLEXÃO Sobre RITOS
Por Roger Valença
Dentre as práticas que envolvem os processos de criação adotados pela companhia Taanteatro, o método escolhido para a elaboração dos exercícios - e seu consequente “resultado final” - relativos ao Núcleo de Pesquisa e Formação do ano de 2010, foi o desenvolvimento do Rito de Passagem pelos performers.
De acordo com Maura Baiocchi no livro TAANTEATRO (pág. 146), o rito de passagem consiste numa abordagem em “forma de cerimônia coletiva de caráter parateatral [...] com a finalidade de iniciar ou realizar a passagem de uma situação ou vivência conhecida para outra nova e atual. O rito “está relacionado ao seu processo dentro das artes cênicas como também à sua vida em geral.”
Deste modo, cada performer é responsável pela organização de um roteiro base, no qual traça previamente ações para todos os integrantes do grupo, desempenhando funções e personagens para tais, assim como indicações de coreografia, figurino, atmosfera tensiva e assim por diante. O rito é elaborado a partir de temas detectados primeiramente num questionário de mitologia pessoal que, por sua vez, são filtrados para serem trabalhados e organizados em formato de roteiro. Este ano, especificamente, as temáticas estão com o foco voltado para a ancestralidade e o ambiente urbano.
A mim, me parecem claras as duas principais vertentes pelas quais essas elaborações viabilizam-se. A primeira trata de passagens reais pretendidas pelo autor do rito. Nesta, o performer-protagonista do momento, identifica impedimentos e/ou bloqueios, enfim, questões pessoais de carga afetiva considerável para si, que julga necessário transpor. Por sua vez, a segunda via trata de uma elaboração, por vezes, mais genérica, ou seja, caracteriza-se por um recolhimento e uma sistematização de informações relativas à mitologia pessoal. Creio que, justamente por pressupor um foco maior na organização de informações recolhidas, nesta “vertente” pode ser observada uma valorização maior de questões estéticas, por exemplo, indicações coreográficas mais profundas, especificações mais elaboradas de figurino, assim por diante...
Cabe lembrar que ambas as vias se dão partindo do mesmo princípio: a reunião de informações possibilitadas pelas respostas do questionário. Por isso, a princípio, todas mantêm uma relação essencial com a ancestralidade pessoal de cada protagonista. A diferença, a meu ver, se dá justamente na escolha temática do momento limiar em si. Alguns protagonistas optam por evoluções, ultrapassagens de bloqueios/impedimentos reais e atuais, enquanto outros usufruem da mitologia simbólica pessoal como um arcabouço rico em imagens que podem ser organizadas na forma de uma “celebração”. Reduzindo: os primeiros focam na “passagem”, os segundos no “rito”.
Nos processos específicos do núcleo 2010, tais tendências distintas podem implicar por sua vez em conseqüências do mesmo modo particulares. Nas passagens “reais” é possível encontrar o protagonista num estado alterado de concentração. Com a percepção dilatada, o mesmo é tomado por uma aura poderosa e pode canalizar o turbilhão de energia concentrado na prática teatral do ritual a fim de operar uma transformação que julga real e necessária em sua vida. Neste caso, o trabalho pessoal do ator pode evoluir muito por avançar por limites desconhecidos, exercitando através da transmutação de situações, em sua maioria, muito desconfortáveis, a favor do trabalho da cena, a sua presença e o trabalho do fluxo de energia enquanto se mantém em estado de alerta.
Encontramos no livro TAANTEATRO (pág. 146) uma elucidação a este respeito: este mergulho profundo “proporciona abertura e amplitude de conceitos, pontos de vista e perspectivas, aumenta a confiança em si e nos outros.
Maura ressalta “a eficácia de tais procedimentos para a obtenção de maior consciência dos performers sobre o que vem a ser um trabalho orgânico pentamuscular, intensificando-se o sentimento de equilíbrio psicofísico. Já em seus primeiros ensaios e práticas com os ritos de passagem “experiências transpessoais e estados alterados de consciência também foram largamente experimentados, e funcionaram como terrenos férteis para o florescimento de novidades cognitivas relacionadas a drama-conflito de diferenças versus desabamento das fronteiras traçadas por nossos pensamentos e atitudes cotidianas”. (pág. 150)
Elaborado com três momentos distintos, ainda que correlatos (pré-liminar, liminar e pós-liminar) “é na fase intermediária, na passagem, no trânsito que a verdade dos performers vem à tona sem classificações ou julgamentos, engendrando o singular e o diferencial, não-idêntico e desestandartizado. Antonin Artaud dizia que todo esse encantamento magnetizante provocado pelos rituais de passagem ‘coloca a sensibilidade num estado de percepção mais aprofundada e mais apurada; é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo’.” (pág. 153)
Em contrapartida, por ser uma reunião muito rica em imagens, organizadas com um embasamento simbólico muito grande, a segunda qualidade de rito tem favorecido muito mais os aspectos coreográficos do exercício – também essenciais para a prática. Assim como materiais a serem utilizados para a composição da cena, especificações acerca de meta-coreografia e coreografia, atmosfera sonora e todas as outras musculaturas externas que tencionam a nosso favor.
Portanto, um perigo me parece eminente: à medida que os ritos embasados na organização seletiva de símbolos pertencentes à mitologia pessoal de cada protagonista podem parecer apresentar uma fonte concreta mais óbvia de processos coreográficos e criativos, creio que residem ocultos justamente na fonte abstrata do primeiro grupo de ritos os aspectos duradouros de qualidade cênica que podem ser captados e trabalhados. Temos uma variedade de procedimentos que será muito útil como fonte de inspiração para a criação. Deste modo, um importante desafio se delineia à nossa frente: já na reta final das práticas dos ritos, cabe ao grupo saber balancear os aspectos distintos, utilizando ambos os fatores positivos que se apresentam a fim de se atingir um equilíbrio que pode ser muito rico para a elaboração de nosso grande ritual final.
REFLEXÃO SOBRE O OCO
Por Adriana Coldebella
Adriana em seu rito O Oco
Foi como se tivessem arrombado o meu corpo com vozes instigantes, pulsantes, enervantes e tombado a máscara que se fez minha durante anos.
A castração da fala não me acompanha mais... O grito se fez verdade, e o vômito de palavras guardadas e encalacradas no meu peito foi jorrado para todos ouvirem. E eu gritei com vontade... Toda a raiva e a punição sentida vieram à tona, tanto quanto a dor do silêncio... E finalmente eu me ouvi... E fiz com que outros me ouvissem por uma fração de tempo...
Aquela que cala, já não existe mais, dando nascimento a um corpo com voz, febril, energizado... E que sente e fala e mostra...
A voz dançada abriu a janela outrora obstruída... Os cacos se juntaram e como um mosaico, desenharam a menina/mulher jamais vista em outro momento...
Embriagada... Digo que estou embriagada de sensações, da delícia de descobrir quem eu sou... O oco que se tornou maciço de hoje em diante...
SOBRE O RITO DE PASSAGEM “O OLHO DA MENINA MORTA”
Por Chiu Yi Chih
Imersas nas entranhas da terra, as mãos fleumáticas se curvam. As fendas espasmódicas nos oferecem: um crânio golpeado, uma placa oxidada. Nesse extremo vácuo onde os ossos respiram, erguemo-nos lentamente de nossos túmulos. Menina Morta violentada, assassinada e jogada num beco, revive sua passagem e o terrível crime-anonimato. Os mortos do Inferno de Dante sonham na boca de uma Cidade Vigiada pelo Demônio da Morte. Como as sementes da ÁRVORE DOS MORTOS, aspiramos o odor das ratazanas. A fúria das larvas escorre no cimento. O vinho da morte inunda o corpo da Menina Morta.
PELA CORDA QUE NASCE DA ÁRVORE. PELA ÁRVORE QUE SOBE AO CÉU, PELO AXIS MUNDI DA ÁRVORE ANCESTRAL renascemos com os músculos do asfalto. Nervos desatados. Asas petrificadas. IMERSAS NAS ENTRANHAS DE UM CASCO COMO A LUXÚRIA DE UM TOURO IMOLADO COM AS VÍSCERAS OLHANDO O CÉU.
Os antigos ritos nos recordavam um mundo subterrâneo. Celebrando a época da colheita, cultuávamos os mortos (Tratado da história das religiões - Mircea Eliade). A vida emanada das sementes era a própria respiração dos mortos, ancestrais velando com os seus olhares as raízes violetas do subsolo. Dentro da terra há várias rachaduras. Infinitos reservatórios onde as almas dos mortos descansam como germe-estrelas ávidas de renascimento. São câmaras escuras, “inumeráveis aposentos consagrados a uma ação ou mesmo a um simples gesto, de que os subterrâneos do templo, como entranhas revolvidas estão repletos”. O rito da ablução, o rito do abandono, da modificação, do despojamento; o rito da nudez total e em toda acepção; o rito da força corrosiva e do ataque imprevisível do sol, correspondente ao aparecimento do javali; o rito da raiva do lobo alpestre e o da obstinação do carneiro; o rito da emanação do calor morno e o da grande crepitação solar na época em que o princípio macho assinala a sua vitória sobre a serpente; todos estes ritos, diariamente através de dez mil câmaras, ou de mês para mês, ou de dois em dois anos, se correspondem – vão de uma veste a um gesto, de um passo a um jacto de sangue.”(Heliogábalo – Artaud)
NOSSO SANGUE NÃO SE DERRETE MAIS. NO OUTONO DE SEUS ÍNTIMOS RESQUÍCIOS GRITA UMA MÃE-ESTRELA. LUZES NAS MANDÍBULAS DOS CÃES. FACHOS ULTRAPASSANDO O TEMPO. O TÚNEL CONTRA AS MARÉS E OS TÚMULOS.
Árvore (Rito Carol)
Por Thiago Henrique
Ela estava ali. Nervosa.
Sentia seu corpo tremer.
Seus galhos me conduziam a um abraço.
Seu corpo.
Suas raízes.
Era momento de troca. Trocar a pele que de tão velha começava a transforma-se em concreto, em NÃO movimento.
Já renovada e livre das enfermidades, completamente enraizada, banhava-se da mais cristalina água de torneira do banheiro do metrô.
Uma grande festa.
Uma enorme dança.
Felicidade.
Sorrisos.
Emoção.
Choro.
A arvorezinha marronzinha saltitava em meio às cinzentas construções que a tentavam destruir.
Sua alegria me contagiava de uma forma que foi impossível não enraizar-me também com ela.
Assim estou.
PLANTADO.
Meus braços, novos galhos.
Me tronco, mais resistência, no eixo e firme do que nunca.
Meus pés são agora raízes fortes.
Frutos?
Logo mais.
Rito de passagem e Tradição
Valter: "Olha, que interessante a descrição de ritual que recebi num e-mail: 'Ritual é uma prática formada por uma sucessão de movimentos, gestos e palavras, consagradas pela tradição e que produzem uma forte impressão na mente interior de forma a alterar positivamente o destino do praticante.'"
Wolfgang: "Os ritos do taanteatro divergem dessa definição na medida em que não recorremos a tradições num sentido restrito da palavra." Patrícia: "Existe un punto donde este tipo de prácticas parateatrales como la que nosotros realizamos, se sumergen el el mundo de los símbolos y los arquetipos para poder conservar su carácter transformador concreto. Todo aquello que nosotros investigamos en libros sobre simbología, mitología, nuestras ancestralidades, la antropología, etc. es parte del encontrar ejes que nos conecten con lo humano trans-cultural y concretamente trabajable; "pasable" por el protagonista. Nosotros no tenemos "una tradición" -en el sentido restricto de la palabra- que consagre y delimite nuestros movimientos y roteiros de los ritos. Por el contrario, cada roteiro es diferente y depende solamente del candidato que lo diseña. El colectivo sólo lo estudia, para realizarlo y transformarlo en el momento en que acontezca el rito. La ausencia de repetición del roteiro es un factor que nos diferencia con otros tipos de ritos sociales. Sin embargo, el carácter estructural y simbólico de los ritos de pasaje desde la metodología taanteatral son muy importantes, pues funcionan alterando la mente interior de el/los protagonista/s alterando positivamente los propios destino. Con certeza de que alteran positivamente los vínculos internos del colectivo participante y modifica el vinculo con lo espectacular. Creo necesario siempre reconocer desde qué fuente se realiza una práctica ritualística, pues un rito de pasaje desde la concepción Taanteatral diverge de otros tipos de trabajo ritual o parateatral, éste forma parte de una metodología muy concreta de trabajo teatral que converge en la creación espectacular."
Valter: "Acredito que nesse sentido, a palavra tradição não deve assustar, e não há como fugir dela, acho que a tradição soma e não subtrai. Quando, por exemplo, estudamos símbolos no Dicionário de Símbolos e acreditamos naquilo que está escrito lá e usamos aquela sabedoria, estamos usando a tradição contida naqueles verbetes cujo significado é oriundo de longa data; isso é também tradição."
Reflexão sobre os rituais de 09.06
Por Cleia Plácido
Cleia em seu próprio ritual
É difícil descrever em palavras ou elaborar uma reflexão mais refinada a respeito da vivência no ritual do dia 09 de junho no Anhangabaú. Se tentar pensar em uma palavra, diria "coração". Um coração que ficou enorme e pequeno, estraçalhado e expandido de forma que parecia querer sair do peito. A impressão que ficou dali foi a de que todo o ritual foi em função deste órgão tão sagrado, para cuidar dele. Toquei em questões das quais não tinha noção da profundidade, do quanto iriam me tirar do eixo, me desestruturar. Escrevi racionalmente um roteiro tocando em sentimentos internos, desejos de um imaginário. Racionalmente sabia qual era a transformação que queria, porém, o ato surgiu num momento impensado e não planejado. Descobri na pele as tensões, fui minha própria cobaia e cientista nesta descoberta. Tudo criou um sentido pungente, passional, gigantesco. Fiquei surpresa, porque não imaginava que haveria tamanha entrega; uma entrega coletiva generosa e expandida. Eu vi minha avó, toquei nas coisas, eram reais. Senti uma enorme gratidão pelas pessoas que se envolveram e compartilharam comigo este momento. É arte? É terapia? Não sei, apenas compreendi que é de dentro da vida pessoal de cada um que sobressaem os temas que realmente tocam as pessoas. Se estes temas saem de dentro da gente, conseguem chegar de forma universal a todos. Somos tão diferentes e ao mesmo tempo sentimos do mesmo jeito, somos seres humanos que vivem numa mesma cidade, num mesmo país, e que sofrem as mesmas necessidades de afeto, de reconhecimento e acolhimento.
Acho que a raiz da ancestralidade nos traz esse prazer de pertencer ao mundo. Quisera que a morte fosse um rio de braços generosos que nos carregassem até o que é essencial, fundamental para sobreviver às intempéries da vida. Se jogar num rio não resolve nossos problemas, mas a simbologia de um rito com signos tão importantes nos ajuda de uma certa forma a exorcizar certos demônios e fazer as pazes com outros. A partir desta experiência percebi que possuo muitos demônios adormecidos e tive uma vontade enorme de realizar e participar de muitos outros rituais tanto meus com de meus colegas participantes. Transformar essa vivência parateatral em elementos potenciais para uma dramaturgia cênica demonstra ser uma tarefa enriquecedora que estimula o imaginário e a criatividade.
Caminhada com objeto de afeto: Ambiente Urbano
Por Carol Greco
Grande expectativa para a realização da caminhada. Um momento colocar em prática minha inquietação sobre a conexão com a musculatura externa, deste ambiente urbano, que até antes da caminhada só havia ocorrido conscientemente através dos sons.
Ao nos posicionarmos no ponto de partida estabelecido, várias reações das pessoas que estavam por perto foram manifestadas, fazendo me sentir uma “invasora” desse espaço que é intitulado “público”, mas que a meu ver, possui territórios estabelecidos. Mesmo assim meu desejo em dialogar e dançar com este espaço era grande, fazendo destes comentários estímulo para a troca e forma de romper fronteiras, transformar e ser transformada.
Iniciar com o mandala de energia corporal foi bem interessante, pois já neste momento pude perceber um diferente estado energético proposto pela rua.
Ter o objeto de afeto presente neste trabalho impulsionou meus movimentos e acredito que este serviu como elo entre as diversas musculaturas. Por ser um objeto afetivo e tão significativo pra mim, ele provocava certo peso, mas também uma busca por conhecê-lo cada vez mais, escutar o som gerado pelo movimento de suas palhas (Veste de obaluaê) e quase desnudá-lo, reconhecer parte de minha ancestralidade. Ao me despedir deste objeto parece que o peso foi amenizado, mas algo dele ainda ficou presente, porém com uma sensação de fortalecimento, o que fez aparecer uma dança cheia de êxtase e felicidade que explodia pelo meu corpo, permitindo-me desnudar e entrar ainda mais em contato com que estava ao entorno. Talvez estivesse atingindo um estado de corpo dilatado, que me permitia lançar vetores ao céu, a terra, aos seres que estavam ali: quando olhava para a avenida, os carros eram sangues que percorriam em minhas veias, minha cabeça era parte do céu, as cores do chão do viaduto Santa Ifigênia relacionavam-se com as cores do objeto afetivo, podia brincar de pisar nos carros, acariciar os prédios, penetrar e comunicar com os olhares das pessoas que passavam ou ficavam naquele lugar. Tudo parecia estar em relação, tudo passou a ser simbólico. Houve a permeabilidade do corpo urbano no corpo/performer.
Muitos foram os comentários dos transeuntes, mas um era recorrente: “O que eles tomaram? Que droga usaram?” e hoje teria como uma possível resposta - um alucinógeno chamado urbanidade que nos permite atingir um corpo extra-cotidiano e nos leva a uma viagem hiper-consciente.
O lugar do rito de passagem
Por Simonne Xavier
Quando nos propomos a realizar uma prática ritualística, aceitamos implicitamente criar um novo espaço-tempo, no qual construímos um edifício de imagens e emoções, calcado em bases desconhecidas do nosso inconsciente. É um vórtice de energia, não como uma bolha no espaço, mas sim uma fenda, uma cratera que, apesar de estar apartada do cotidiano, se mantém aberta ao mesmo tempo, de onde permite o diálogo e a respiração com tudo que está em volta. É um aprofundamento no espaço-tempo, tal qual observamos os buracos na beira da praia... Não somos capazes de perceber, mas eles estão lá, podemos cair a qualquer momento, mas algumas condições irão se manter: ainda é mar, ainda é água, ainda é areia. Entretanto, também pode ser afogamento, destruição, buraco sem fim...
O que fazer diante do abismo? Pular ou recuar? Há aqueles que ficam sempre à beira, observando os dois lados, a realizar o ir e o seguir ao mesmo tempo, mas também nenhum deles. Qual lugar é possível alcançar dessa forma?
Mesmo quando ainda não há a decisão, parcialmente o sujeito está na coisa em si, pois o não-lugar do ritual é altamente sedutor, até para os pássaros que voam acima das nossas cabeças. O entremeio é a porta do ritual, colorida, viva e pulsante – quer você queira ou não entrar.
Entrar no ritual significa colocar todos os sentidos em direção a um único propósito. Um grande mergulho dentro de si mesmo, impregnado de influências, desde a ancestralidade até o momento presente: a ausência de dor no pé machucado, o frio que se deixa de sentir, a fome que deixa de existir, a falta de sentido que, de repente, passa a ter todo o sentido do mundo. A imagem é de um passeio entre árvores muito altas, requer equilíbrio, observação, concentração, estratégia, rapidez, foco... A vida está em jogo, portanto a sobrevivência dita as regras do caminho e todas as armas são usadas – pleno estado de alerta. Saltos grandes, saltos pequenos, de galho em galho, vamos percorrendo um caminho desconhecido, nunca realizado anteriormente, novas paisagens, novos olhares, novas descobertas.
Tal qual o bicho que perambula na floresta, é o sujeito no momento do rito. Há que se perceber todos os aspectos que circundam, olhar atento em busca de absorver todos os mínimos detalhes da nova realidade que no momento presente é criada. Aí está a questão: o agora. Quando todos os poros respiram o acontecimento presente: o céu, o ar, a temperatura, o chão, os outros, os estímulos, as interferências, os obstáculos, não há lugar para julgamentos, não há lugar para racionalizações baratas e inócuas, não há lugar para a mediocridade e para a pequenez diante do universo. A análise racional é um veneno diante de uma experiência tão sublime, pois impede que haja a entrega necessária à própria sobrevivência do indivíduo e, muitas vezes, tem o poder de contaminar o ambiente. Qual lugar é possível alcançar dessa forma? Como diria Nietzsche, aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. Que este lugar seja apenas uma passagem, uma breve pausa para logo se encaminhar ao objetivo real e imperdível para aquele que não tem medo de se arriscar nos labirintos do inconsciente.
Em contrapartida, quando de fato há a permissão interna, a sensação do estar no mundo fica tão expandida, que a consciência universal nos atinge e surge um grande sentido de integração com o universo, além de um possível realinhamento dos estados inconscientes. Como todo ritual, em todas as culturas, um canal direto com o aspecto divino que habita cada ser vivo, fortalece e ilumina, traz sentido, energiza, direciona, transmuta, ajuda a crer no fluxo ininterrupto do universo. Diante de tal questão, cabe a cada um perceber o momento do ritual como uma grande oportunidade, antes de ser fenda, buraco ou não-lugar, é um portal... Acesso direto ao que há de mais essencial em cada um de nós, momento de transmutação para uma realidade sempre melhor do que aquela vivida até o momento. São os alicerces invisíveis do ser que poeticamente se tornam visíveis e se reencontram dentro do universo.
Caminhada com objeto de afeto: primeira experiência na rua
Por Janaína Ribeiro
Ao deixar o meu objeto no exercício da caminhada, não deixei apenas um objeto, mas algo me foi arrancado, permanecendo apenas o vazio e a dor de algo que não é mais meu. Como se eu fosse castigada, e como castigo me tiraram o que tenho de mais precioso. E tudo isso ocorreu como numa explosão. Acredito que toda minha reação naturalmente ia acontecer, em um outro tempo, um pouco mais devagar, talvez eu teria um tempo maior para respirar ou me afastar um pouco mais do objeto, no entanto, eu mal coloquei no chão e uma pessoa, que estava passando por lá, desatento, pisou no objeto de outra pessoa, e o meu objeto estava ao lado, e num instante explodi descontroladamente. Num choro desesperado e seco, por que eu estava seca por dentro, vazia, sem nada em mãos. Totalmente sozinha naquela imensidão.
Eu buscava entre todos um olhar, algum gesto de que tudo ficaria bem, de que não estava lá sozinha e, então, encontrei a Lílian que em sua música baixinha e singela me confortou, me deu forças para continuar meu trajeto. No entanto, meus olhos não saiam do meu objeto que a cada passo estava cada vez mais distante, até o momento em que não quis mais olhar, e virei minhas costas, buscando continuar caminhando. Quando uma mão me ajudou, me fazendo andar, sem olhar para trás, me empurrando a voltar a caminhar, me fortalecendo. Meu zerar só ocorreu quando tinha novamente em minhas mãos minha flor, o meu objeto, quando tive a sensação de que não o que tenho é meu, é o meu presente, o que me deram, é o que eu sou e ninguém me tira.
Eu fiquei seca assim como é o meu objeto, uma flor seca, porém seu perfume permanecia tão vivo, tão forte. Como pode algo morto, seco, estar aparentemente tão vivo, com algo tão peculiar e singelo por dentro, como se buscasse a vida mesmo estando na situação em que está? Como uma paixão latente e inesgotável, como se o amor nunca acabasse mesmo estando morta. Como se o que temos de mais precioso ninguém poderá nos tirar.
E é assim que nós, atores, temos que ser: como essa flor seca. Buscar ultrapassar limites, entrar em contato com essa dimensão interior. Buscar desesperadamente o corpo que está em trânsito, em dança, tornando-o capaz de transitar entre o vazio e as formas, fazer com que se preencha de sol, de luz, de cor, de perfume. Que mergulha no espaço e o torna suspenso. Um corpo em criação que gera entrada de luz e se expande. E a busca desse corpo é infinita, sua construção é a eterna reconstrução de seu próprio corpo, que nunca está no mesmo ponto. É deixar-se metamorfosear em qualquer coisa, pois ele muda seu estado corporal, porque ele é vontade e atitude.
O ator tem que ser o seu próprio construtor, ser o artesão de si próprio, como se rasgasse a própria pele para trocá-la, é permitir ser habitado pelos mortos, pelos ancestrais que habitam dentro de si e que criam imagens e mudanças de estados corporais. Perceber esse universo interno que está no corpo do ator, é um deixar-se explodir pelas cores e imagens. Dançar danças já dançadas, que se apoderam do ser, é a dança em pura febre. É deixar-se devorar a própria carne.
Ambiente chamado corpo
por Tatiana Schunck
O corpo é ambiente. Um corpo que é processual em sua manifestação. É ambiente que está inserido num contexto e o tempo todo é invadido por informações. É decodificador das mesmas na sua expressão. O tempo todo o corpo seleciona, organiza, recebe, sente, articula e negocia. Num processo de instabilidade, pois vive num mundo instável.
A proposta vivida nesse coletivo Nutaan proporciona colocar este corpo que é processual, que vive nessa instabilidade (inclusive aquela do espaço urbano) como agente expressivo. Colocando-se atento aos seus processos cognitivos/físicos para a experimentação dentro de uma escala dramática expressiva.
Esqueleto / órgãos / fascia / músculos / pele / tecido
Quais os exercícios?
Não interessa, em nossas experimentações tensivas, uma movimentação perfeita; nem se direciona para o aperfeiçoamento, mas sim a busca da movimentação primeira/genuína desse corpo que é formado pelas experiências pessoais, informações genéticas, ambientes. Está se procurando tocar a expressão pessoal que “acontece”, que está no devir. E que se configura no espaço/tempo possíveis.
No pensamento da arte de Gilles Deleuze, o teatro ocupa lugar singular em sua produção, que poderia se chamar de estética. Isso porque pensar a estética em Deleuze, não é precisamente constituir uma teoria geral da arte ou mesmo uma estética no sentido tal qual se tornou canônico. Ou seja, não se trata de uma estética que procure pensar uma teoria do belo, uma teoria do julgamento do gosto, ou ainda, que busque uma teoria da experiência do sujeito; mas isto sim, uma outra estética, que se configuraria como uma forma de enfrentamento ao caos, uma luta contra a opinião e o senso comum, além de uma contundente recusa aos clichês. E mais, trata-se de um pensamento que enseja testemunhar o nascimento, no plano da arte, de um "por vir".
Criam-se desenhos em constantes transformações – não é a pintura final, é o “pintando” o quadro. Essa é a ação que interessa. A criação em permanência pelo entendimento do presente dentro da trajetória para, possivelmente, projetar um lugar futuro. E viver assim os ciclos dos ritos: a ruptura, a iniciação, o retorno ao coletivo. Viver as mortes, dançar os tempos passados, dançar os tempos presente, passado, futuro; sempre nesse constante movimento do ‘vir’. Nesse sentido, nosso organismo é solucionador de problemas/conflitos em permanente busca de melhores condições. Aqui, ação e cognição estão na mesma escala temporal. Dada a sua especificidade física, o corpo porta aptidão para produzir formas em construções poderosas e porosas. E construir idéias em movimentos é vivenciá-las de forma crítica/reflexiva.
Assim, experimento o marítimo, como lugar de experimentação, seleção, negociação, intuição e composição. Enquanto me experimento livremente, ocorre um processo de codificação dos pensamentos, este processo tem aptidão para acionar o cruzamento de ocorrências coerentes. Formas que se manifestam por uma escolha que não é exatamente racional, mas cognitiva em ação e movimento. Lugar complexo esse, como explicar o que escolho, como escolho, como o movimento ocorre enquanto experimento?
Parece-me que através do movimento, distinguimos coisas importantes como saber em que chão se pisa, como pisar neste chão; o sensorialmente sentido parece ser a fonte da cognição.
MAIÊUTICA SOBRE DANÇA, MORTE E VIDA
Por Wolfgang, Valter, Patrícia e Simonne
Como é possível que a dança seja de um lado "celebração da vida" e por outro a tentativa de superar o "perecível"? Não são os seres vivos os mais perecíveis que existem? O que se celebra seria, portanto, o fluxo contínuo de uma produção vital, para além da descontinuidade dos seres vivos individuais?
Mas, "celebração da vida" implica "superação do perecível", pois perecer é morrer e celebrar a vida é o contrário de morrer, então a dança pode ser a negação da morte...? Pois estar vivo é forçosamente dançar - a dança da vida: dos corpos, da natureza (águas, animais, plantas, vento...). Se tudo é dança, a vida é dança! Mas, e na morte, não haveria dança? Então aí, talvez entre o fluxo contínuo de produção vital para além da morte...
Agora, se a morte é necessária para a real iniciação da vida, então o êxtase e a febre da dança é uma forma de matar? As danças da vida são vitais por estarem matando alguma coisa? Acredito que a vida e a morte além da linguagem, portanto, além do tempo, ocorre como um fluxo de tensões. Na prática, a dança ativa os vasos sanguíneos da vida, perecendo - dançar ENT(r)E.
Até que ponto celebrar a vida não pode incorrer em celebrar a morte? O perecível e o imperecível parecem as relações de tensão, um não existe sem o outro... Dançar não seria então viver e morrer ao mesmo tempo? Por isso então seria uma febre, um clímax, um frenesi... Todo o nosso ser, sem exceção, envolvido no mesmo processo. E não é isso o que acontece na nossa vida? Um fluxo ininterrupto de ir e vir? Quando assumimos a infinitude dos atos, compreendemos parte da lógica do universo e descobrimos que não ser é também ser. Como dizia o grande mestre de Butoh, nove passos para dez... Lentificar os processos nos ajuda a encontrar o divino, encontrar ao mesmo tempo todas as faces necessárias para não só dançar, mas permitir ser dançado, ou seja, permitir integrar-se e entregar-se ao fluxo universal... Então, nossos braços e pernas não serão mais somente membros, poderão se transformar em pássaros em vôo e chegar onde quisermos ir...
Reflexões sobre caminhada
Por Adriana Coldebella
Fiquei pensando muito sobre o texto lido ontem - a dança e seu significado simbólico. Pensei muito sobre a minha postura e as minhas vivências dentro do Nutaan, e quero compartilhar isso com vocês, afinal nós vivemos tudo isso juntos agora...
Essa febre, esse êxtase eu senti na segunda caminhada, há alguns dias atrás. Venho de uma linha de pesquisa que não mexe muito com o que dói, que às vezes pode até parecer superficial, mas que trabalha de um outro jeito... E aí, caio de cabeça dentro de uma DANÇA REAL, de uma dança que busca tudo de mais interno e borbulhante que existe em nós... Eu ando muito sensibilizada com tudo que estamos trabalhando, com as minhas dores internas, os meus questionamentos e as minhas indecisões, as minhas frustrações de ser uma bailarina que não fala, que não canta, que só sabe "dançar" e essas aspas dizem tudo... Às vezes sinto que o meu mar-ritmo parece falso, que eu o conduzo, mas no dia da caminhada eu levei um tapa na cara com luva de pelica... Eu estava extremamente frustrada comigo, terminei o mar-ritmo antes de todos e fiquei a observar, foi quando Wolfgang chamou algumas pessoas para irem para a parede, inclusive eu para iniciar a caminhada. Algo interno, que não sei explicar até hoje transbordou em mim... Iniciei a caminhada com uma força que eu nunca tive antes, com uma ira de não conseguir falar, com um desejo de empurrar todo o sólido que me esconde que eu me pus em prantos e chorei com vontade, chorei a angústia, a ira e a brutalidade que eu estava sentindo. A ânsia de gritar só aconteceu no final e nesse momento houve um vácuo de pensamento em mim. Eu não condicionei nada, eu deixei tudo de lado e apenas segui o grupo, e sinceramente foi a experiência mais marcante de toda a minha vida, sem mais questionamentos.
Reflexões de Simonne Xavier
Durante o trabalho estamos expostos há uma série de estímulos - de muitas ordens -intelectuais, corporais, emocionais e psíquicas. E tenho certeza que todos encontram ao longo desse caminho novas descobertas, sensações e impressões que nunca foram acessadas. Por isso é muito importante que haja um registro do olhar de cada um. O fato é que as grandes teorias são feitas de pequenos fragmentos, pois talvez não temos a capacidade de enxergar o todo de uma só vez, o que torna o caminho do novo cada vez mais instigante, apesar de subjetivo e complexo. Eu sei que nem sempre conseguimos nos expressar escrevendo, para alguns é mais fácil e para outros não... Entretanto existem outras formas de refletir e de provocar a escrita: desenhar, pintar, gravar as impressões em MP3 ou celular, encontrar músicas ou textos que lembram o que vivemos nos encontros e etc. Depois, podemos usar esse mesmo material para escrever. O ideal é fazer esse processo logo após o ensaio ou a um insight, pois ele está íntegro na nossa memória. A riqueza está justamente aí: cada um de nós tem uma visão particular e única a respeito do processo, sempre com potencial de ampliar o conhecimento de todos sobre os fatos.
Então, gostaria de lembrá-los que a produção intelectual também faz parte do projeto Nutaan, principalmente como base para o livro que será publicado pela Taanteatro, incluindo algumas citações dos performers. Os textos passam por mim para revisão e depois seguem para o Valter, que faz a publicação no blog. Iremos procurar minimizar ao máximo esse processo, para que a dinâmica de leitura esteja sempre em dia!
Sexta-feira estaremos na rua, nos colocando em uma situação bem peculiar... Que tal abrir os poros do pensamento para absorver e observar o que acontece dentro de nós? É o primeiro passo para a reflexão...
Primeira Caminhada - reflexões de Zedu
Tempo de ‘zerar’ – fico por alguns minutos ‘parado’ olhos fixos no vitral de uma igreja. Aos poucos uma teia se tecia entre os corpos e numa onda fomos levados até a outra extremidade da sala.
IDA - esse momento sutil entre tempo/espaço real e tempo/espaço ficcional, a passagem entre um e outro, o momento tensivo, afinar as cordas. O tempo dilata e o espaço reconfigura-se. Por um breve instante minha visão periférica nublou-se e a luz que entrava por minha retina permitia ver apenas o vitral com nitidez. Sinto vertigem. Meu corpo é levado, suavemente por essa onda de energia; procuro aterramento, sola do pé. Dentro de mim tudo corre, sangue, pensamento. Busco uma respiração calma e profunda que me dará o ritmo do deslocamento. Quando experimento uma respiração curta e sincopada sinto dor de cabeça e volto à respiração anterior. Durante toda a caminhada seria contaminado pela pentamusculatura de outros corpos.
JANELA - a paisagem externa parece estar em outro tempo, e está mesmo. O vitral, de onde não tiro os olhos, está carregado de passado e solene à espera do futuro e ao mesmo tempo é a imagem que me traz ao presente, para a caminhada, à regra. Os outros estímulos da paisagem me dispersam e procuro o vitral/portal.
VOLTA – voltar de costas, de ré, olho na nuca, lentamente; era como se a onda tivesse batido no rochedo. Tenho a sensação que o tempo havia passado só um pouquinho, o que não era verdade. A teia, as conexões, as tensões se formam, mas confesso que as sinto tão frágeis como uma bola de sabão. Respiração, relaxamento, tensões e disponibilidade e as expansões se rearticulam. Qual a energia necessária à realização dessa caminhada? Equalizar tensão e relaxamento. Busco sempre esse ponto durante o trabalho.
Reflexões do dia 05.05: os exercícios serviram para uma preparação corporal, consciência corporal e espacial, ritmo, sincronismo e resistência física. Alguns deles foram bem fáceis de serem realizados, no entanto outros me exigiram bastante resistência, coordenação, consciência espacial e concentração. Tenho grande dificuldade com as seqüências coreográficas que precisam de consciência e coordenação. Em vários momentos fui atentada a fixar mais o pé no chão (base).
Foi um dia de grande dificuldade, pois estes movimentos ainda não foram registrados pelo meu corpo.
Reflexões do dia 07.05: sequência de alongamentos e esforço. Caminhada: em conjunto os participantes tiveram como objetivo caminhar de uma ponta da sala até a outra (janela), sendo 15 minutos para chegar até a janela e mais 15 para retornar ao ponto inicial, porém de costas. Wolfgang ressaltou a importância da respiração e utilização do terceiro olho.
Roda de reflexão sobre o exercício anterior: neste momento cada participante pode colocar suas impressões, sensações, percepções sobre a caminhada. Muitos foram os relatos (Foco Triangular: Eu/Eu - Eu/Companheiros – Eu/Espaço). (Dentro: sala - fora: ambiente urbano/rua). “A permeabilidade das coisas e dos corpos não anula sua diferença, pelo contrário: é na comunicação entre dois que as diferenças ganham relevo e dinâmica” (Livro TAANTEATRO – pág. 57).
Movimentos repetitivos: prazer – pois a repetição gerava outro tipo de movimento / acontecimento e desconforto – provocado pela memória corporal (repetir o que já faz e não arriscar algo novo) – estes são dois caminhos possíveis para a criação? “Repetição, portanto não quer dizer de modo algum reiteração do idêntico” (Livro TAANTEATRO – pág, 155). Incorporação do ambiente externo ao interno (corpo / performer) – “Os carros, pessoas, barulhos pareciam invadir meu corpo”. Viagem interna: estar atento aos movimentos, acontecimentos, transformações interiores. Variação da presença: dificuldade de estar totalmente inteiro aos acontecimentos, excesso de racionalização. A racionalização também não é produtiva? Esquizopresença: “Era esquisito estar / perceber vários lugares ao mesmo tempo”.
Neste dia ainda senti grande dificuldade com os exercícios de sequências, quanto mais racionalizava, mais meu corpo se tornava “burro”, uma luta constante. No entanto senti-me mais familiarizada com alguns movimentos, algo já começou a pertencer ao meu corpo, tornou-se um pouco mais fácil.
A caminhada foi uma experiência muito rica, procurei entregar-me ao máximo, estar presente no exercício. Sensações: a respiração foi bem importante para que eu conseguisse entrar no exercício, inicialmente eu instigava um acontecimento respiratório, mas com o decorrer a respiração se tornava orgânica e estimulava uma movimentação corporal (movimentação que era repetitiva em vários momentos, no entanto com a repetição ela se intensificava e se transformava). Também houve momentos em que os sons e o ar pareciam não conseguir fluir para as partes do corpo e para fora, gerando rigidez e torções. Quando a movimentação era mais suave parecia que havia uma maior fluidez, porém era mais fácil “sair” do exercício, o que ajudava a retomar o foco era o terceiro olho e o impulso para a respiração.
Eu estava bem atenta às movimentações interiores (corpo / performer) e aos acontecimentos do meio ambiente (sala e companheiros), no entanto minha percepção ao ambiente externo (urbano) foi mínima, minha ligação com este era apenas o barulho, vento e ao meu foco (igreja).
Reflexões do dia 18.05: Embora encontre muitas dificuldades durante os exercícios de esforços, eu percebo que já existe uma mudança na incorporação deles, o que vem facilitando esta apropriação é a concentração no trabalho.
Durante o Mandala de Energia Corporal, com o auxílio das diretrizes (base/ pé paralelos/ respiração / olhar) consegui atingir um estado de concentração que facilitou o desenvolvimento da pentamusculatura no decorrer dos movimentos; parecia que cada etapa do Mandala fortalecia a etapa seguinte em todos os quesitos (corpo / corpo psique), diferentes estados surgiam e o meu corpo reagia a cada um deles, de formas conhecidas (que se repetem em trabalhos energéticos) e desconhecidas. Os movimentos fluíam por todo meu corpo. Quando cheguei ao estado da matéria-fogo: percebi uma grande “transformação” – os movimentos foram expressos em corpo / voz de maneira intensa e orgânica em relação a outros momentos vivenciados. Ainda sobre este estado da matéria, houve certo “descontrole” e falta de percepção (até mesmo esbarrei em alguém na sala), mesmo achando que devo descobrir e aumentar a minha percepção em relação ao todo, achei que este momento foi importante para o desentupimento do fluxo de energia. A conexão com o ambiente externo-rua ainda se dá através de sons.
Reflexões do dia 19.05: foi muito importante a discussão teórica sobre Rito de Passagem, pois gerou questionamentos e “soluções” antes não visualizadas com tanta intensidade. Acredito que abriu caminhos e estimulou minha imaginação sobre o tema / desejo a ser trabalhado em meu rito de passagem.
Enfatizar o rito como algo também coletivo, me traz reflexões sobre a questão energética e sua atuação nos momentos de trabalho, manter uma atenção – tensão, buscando não deixar acontecer a dispersão de energia / presença que é também essencial para que o trabalho aconteça. Pra mim essa questão fica bem clara quando chegamos ao marítimo, é possível sentir quando há conexão e concentração de energias a favor de uma realização.
Outro ponto que me deixa instigada é a escolha do tema para o rito de Passagem! O desejo! Como descobrir o real desejo? Acho bem interessante a frase exposta no livro Taanteatro – Teatro coreográfico de Tensões: “...a urgência da afirmação da morte como potência semeadora de novas formas de vida...” (pág. 150).
Reflexão de Thiago Henrique
Primeira Caminhada
Zerar (isso ainda é novo pra mim). Corpo e mente chegam ao esvaziamento. Respiro.
Respiro novamente. E assim essa respiração me produz movimento. Caminho. Aumento da respiração. Forte, fraca. Sinto-me conectado com tudo e todos que estão ao meu redor. Preciso chegar até a janela. Chego. Depois de um longo percurso que parece não ter fim, mas ao mesmo tempo muito rápido.
Meus olhos e o mundo exterior. Que loucura. A vida pulsa lá fora e dentro de mim.
Sinto-me ligado a cada movimento da rua e seus andarilhos. Os carros, os ônibus, as pessoas. Todos passam por minhas veias. Banhados pelo meu sangue frenético.
Uma sensação de sufocamento e impossibilidade. Meu corpo quer responder, não consigo. A sensação aumenta e se torna ainda mais impossível realizar algo.
Meus movimentos estão mortos. Quero falar. O mundo não deixa.
Respiração. Choro compulsivo. Sou tão pequeno. Minha incapacidade é tão grande.
Chegamos ao fim do exercício. Preenchido retorno dessa viagem. Que delícia de sensação. Momento único.
conseguir visualizar seu coração em suas próprias mãos é algo extremamente forte. E ainda poder cuidar dele da forma que quizermos e colocá-lo novamente em sua casa novinho em folha é confortante demais...saber que podemos cuidar de cada parte do nosso corpo de um jeito que nunca havia pensado antes...
ResponderExcluirRito e conflito
ResponderExcluirO rito de passagem diz respeito a uma dinâmica elementar da realidade: a mudança. O cerne da mudança é conflituoso. Esta idéia está presente no pensamento de Heráclito: a guerra é o princípio gerador de todas as coisas. Além disso, a mudança é experienciada como conflito. Ao superar o passado algo se perde, se torna irrecuperável. A impermanência de nossos padrões de percepção e interação e de nossos valores mais altos se torna fisicamente concreta. O corpo é arrancado de sua ambientação costumeira. Percebemos que algo em nós está prestes a se tornar obsoleto, a perecer. Relutamos. Mas a mudança é inevitável e como tal necessita de mediação. É neste ponto que entra o rito, mediando e remediando nossa posição precária entre ser e devir.
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Ao mesmo tempo que o rito lança o candidato no limbo e na dissolução das relacões sociais e de valor, ele organiza sua experiência e, através de sua estrutura narrativa, promete a possibilidade de chegada no "outro lado". Desta forma confere sentido à mudança.
Wolfgang Pannek